9.5.06

GALILEU NO PALCO

Estreia em Lisboa uma peça sobre o drama de um cientista
e sobre um confronto que ainda hoje continua a ser polémico

TEMOS agora oportunidade de ver no palco uma das mais míticas peças da história do teatro moderno. É a «Vida de Galileu», de Brecht, habitualmente referida apenas como «Galileu». É uma peça que sofreu mutações drásticas na pena e nas intenções do próprio autor, e que teve de esperar pelo 25 de Abril para poder ser vista em Portugal.

A primeira versão portuguesa do texto foi assinada por Yvette Centeno e publicada em 1970 pela Portugália Editora. Para chegar aos palcos portugueses, contudo, a peça teve de esperar pelo 25 de Abril. Apareceu brevemente em Lisboa, em Abril de 1975, pelas mãos de uma companhia brasileira. Era «a peça do século», segundo anunciava o «Diário de Notícias». Onze anos depois, o Teatro Experimental de Cascais voltava a representá-la. Mais recentemente, em 1998, cenas escolhidas estiveram em palco na Universidade do Porto e, em 2005, de novo uma selecção de cenas esteve no Teatro Gil Vicente, em Coimbra, de onde partiu para representações limitadas em Aveiro, Castelo Branco e Lisboa.

O que o Teatro Aberto agora apresenta, em Lisboa, é uma nova versão portuguesa da peça, em tradução directa de Vera Sampaio Lemos e numa versão desta germanista e do encenador João Lourenço. É certamente um evento cénico e um evento cultural. Passaram mais de seis décadas sobre o texto original de Brecht e mais de três décadas sobre o 25 de Abril. A peça «Galileu» está já parcialmente despida da grande emotividade que rodeou a sua proibição e que se manteve na sua posterior ida a palco, que assim tinha surgido como vitória da liberdade. A própria apreciação que hoje se faz sobre a vida de Galileu e sobre o seu processo mudou significativamente. Mas a peça conserva a sua veemência. É ainda um libelo contra a prepotência e uma defesa da liberdade de investigação científica e de pensamento. O espectador de 2006, apesar de estar longe de 1975 e, ainda mais, claro, de 1633, não pode ficar insensível a um dos grandes dramas da história, rescrito por um dos grandes dramaturgos e propagandistas literários do século XX.

Clavius

Bertolt Brecht (1898–1956) trabalhou nesta peça mais do que em qualquer outra. A ideia brotou-lhe em 1933, por ocasião do terceiro centenário da condenação de Galileu, data que coincidiu com o seu exílio da Alemanha, que então enveredava pelo nazismo. Escreveu uma primeira versão em 1938, quando estava exilado na Dinamarca, mas a peça só seria representada em 1943, em Zurique. Com a guerra e o avanço nazi pela Europa, Brecht tomou refúgio nos Estados Unidos. Em 1944 começou a trabalhar numa segunda versão da peça, que seria adaptada em conjunto com o actor Charles Laughton e levada por este ao palco em 1947, em Hollywood e Nova Iorque. De regresso à Alemanha, em 1948, fixou-se em Berlim Leste, onde foi autorizado a constituir a sua própria companhia. Em 1955 e em 1956, trabalhou numa terceira versão da «Vida de Galileu», que seria levada à cena neste último ano, já depois do seu falecimento.


Tycho Brahe
As intenções de Brecht foram mudando, sendo posta uma intencionalidade diferente em cada uma das versões da peça. Na primeira versão, a «dinamarquesa», a verdade histórica é bastante respeitada. Galileu aparece como um homem de ciência empenhado em conhecer o mundo. É uma figura heróica, preocupada com a educação do público e que, por isso, escreve em italiano vulgar e não em latim. É um católico convicto, que obedece às directivas da Igreja e que apenas infringe essas directivas quando se julga apoiado pela eleição de um novo papa — um cardeal que era seu amigo pessoal e que sempre tinha respeitado a ciência. No final, é um homem que não resiste e se retracta, por falta de força para se opor à Inquisição. Fica destroçado, mas passa os seus últimos dias preparando novos trabalhos que tudo faria para passar através da fronteira e revolucionar a ciência e o mundo. Brecht transmite assim aos seus compatriotas a viver sobre o nazismo a ideia de que vale a pena esconderem as suas ideias para poderem mais tarde divulgá-las. (*)
(*) Texto integral em «Comentário-1»