Rumo à indigestão (*)
SERIA certamente mais estimulante, adequado e politicamente correcto citar aqui o título de uma obra clássica de Álvaro Cunhal: «Rumo à Vitória». Mas esta crónica não é dedicada às nossas duas selecções de "pés da pátria" - a de sub-21 e a principal -, cujas sagas não deixarei de exaltar nas próximas semanas, como convém a qualquer patriota que se preze. Embora sem as bandeirinhas nacionais do professor Marcelo penduradas nas janelas do nono andar do prédio em que moro, no bairro de Alvalade.
A verdade é que, desde ontem, dia 23 de Maio, em Barcelos, até ao próximo dia 9 de Julho, em Berlim, vamos mergulhar numa orgia televisiva de pontapés na bola que ameaça causar uma grande indigestão, ou fartadela, como outrora se dizia em linguagem popular. São 79 jogos de futebol concentrados em 48 dias: 15 para o Europeu de Sub-21 no Noroeste de Portugal continental, entre 23 de Maio e 4 de Junho; 64 para o Mundial 2006 na Alemanha, entre 9 de Junho e 9 de Julho. Atenção aos estômagos!
Trata-se de um exemplo flagrante de tittytainement, neologismo oportunamente inventado, no final do século XX, por Zbigniew Brzezinsky, norte-americano de origem polaca especialista em política internacional e conselheiro para a Segurança Nacional do presidente Jimmy Carter. O neologismo resulta da combinação das palavras tits (termo do calão norte-americano que designa seios ou tetas) e entertainement (entretenimento). Sendo certo que, ao falar de tits, Zbigniew Brzezinsky não estava propriamente a pensar em sexo, mas no "leite que escorre do peito de qualquer mãe que amamenta".
O tittytainement traduz-se, em suma, num "coktail de divertimento embrutecedor e de alimentação suficiente, capaz de permitir, segundo o autor, manter o bom humor da população frustrada do planeta" - conforme explicam dois jornalistas alemães da revista Der Spiegel, Hans-Peter Martin e Harald Schumann, num famoso livro que publicaram em 1996, intitulado «A Armadilha da Globalização» («Die Globalisierungsfalle»).
De facto, os global players da informática e das finanças, os dirigentes das mais poderosas empresas multinacionais e alguns grandes sacerdotes da economia neoliberal estão convencidos de que, neste século XXI, "dois décimos da população activa bastarão para manter em actividade a economia mundial". Então, que fazer com o supérfluo resto dos habitantes do planeta? Ocupá-los com trabalhos menores e marginais modestamente remunerados e proporcionar-lhes tittytainement para se manterem tranquilos.
Muitos terão sorrido ao ver o cartaz erguido por uma grevista da função pública, no qual se lia: "Para Nós não há Mundial que nos distraia". Mas, se um bom espectáculo de futebol não embrutece ninguém, doses maciças de pontapé na bola e "patrioteirismo" podem causar graves dispepsias políticas. Por isso, cautela com as indigestões!
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(*) Crónica de Alfredo Barroso no«DN» de hoje, aqui transcrita com sua autorização
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