E já que falamos de futebol... (*)
O TRIVIAL
Num clássico sobre futebol, provavelmente desconhecido entre nós e publicado há já dez anos - The Football Factory, de John King -, o protagonista, Tom, adepto de um Chelsea que ainda nem sonhava com Mourinho, começa por dizer que "o futebol é inteiramente uma questão de ambiente, e se os estádios estivessem vazios, se neles não houvesse tanto barulho, não valeria a pena lá ir". Para ele e para o seu bando de amigos ainda jovens, párias numa sociedade inglesa então em crise, devastada pelo desemprego e o alcoolismo, pouco importava a vitória ou a derrota, mas sim o cenário de violência caracterizado pelas cenas de pancadaria com os adeptos dos clubes rivais e de cacetada com a polícia. Nada que se parecesse com os "brandos costumes" lusitanos.
Mais de duzentas páginas e vários anos depois, Tom confessa que gosta sempre de ver o futebol pela televisão. Não como quando era criança e decorava os nomes das equipas, dos jogadores, dos estádios, mas como um "ritual de sábado à tarde, que tu não podes perceber quando és jovem porque andas lá fora às voltas com os truques da vida". Tom admite que, ao envelhecer, talvez perca os seus ímpetos de violência e sexo, para se contentar com o que lhe dava prazer quando era puto. "História de velhos que entram na segunda infância", diz ele, enquanto vê desfilar os eternos jornalistas especializados, uns a darem palpites válidos, outros a debitarem disparates, enchendo os nossos ouvidos de comentários sobre, por exemplo, a rivalidade entre as duas equipas, mas totalmente incapazes de reproduzir os momentos fortes do jogo que está a ser transmitido.
A televisão apropriou-se do futebol, "mas um tipo médio, que passa o tempo às voltas com o telecomando, de rabo sentado no sofá, só terá direito ao rectângulo de jogo e a três bancadas", lamenta Tom. Um tipo assim "vai malbaratar a vida a fazer zapping, regressando sempre à bola, atraído pelo ruído da multidão e por essa paixão que faz do futebol um desporto à parte". É certo que "os canais de televisão não atribuem qualquer importância aos adeptos, mas sem o barulho, sem o movimento dos espectadores, a bola não seria nada". Porque o futebol "é uma história de paixão" e "a televisão nada poderá contra isso". "Sem a paixão, o futebol está morto. Restam 22 tipos adultos a correr atrás de uma bola sobre um pedaço de relva." Ora, são as pessoas que fazem do futebol uma festa: "Elas aquecem e tudo levanta voo." Isto é: "Quando tu tens uma paixão, não importa qual, ela transborda." É por vezes o que sucede com o pontapé na bola.
Esta é uma história inglesa, em que, apesar da televisão, os estádios continuam a transbordar de adeptos. Não é uma história portuguesa, em que os estádios, alguns deles novinhos em folha, continuam, regra geral, às moscas. Desolação que já nem consegue ser disfarçada pelas bancadas sarapintadas, estilo trompe-l'oeil, por Tomás Taveira. Cá, só é de esperar mais do mesmo. As eternas escaramuças entre dirigentes dos clubes e da Liga. O não menos eterno caso do "Apito Dourado", cada vez mais ferrugento. O folhetim da transferência de Simão. Entre outros episódios do folclore lusitano. Que não matam a esperança numa Liga bem disputada entre os três do costume. Em suma: o trivial.
-(*) Já que falamos de futebol, aqui fica a crónica das 4ªs-feiras de Alfredo Barroso no «DN», transcrita com sua autorização.
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