28.10.06

ARROGÂNCIA IMPERIAL

QUANDO invocamos a História para compreender melhor o presente, convém ter cautela com as analogias superficiais e é prudente evitar identificações que acabam por se revelar como falsas. Existem, todavia, exemplos com os quais é legítimo estabelecer paralelismos. A Guerra do Peloponeso, escrita por Tucídides há 24 séculos, é um marco da história política e militar que, pelo seu carácter demonstrativo e pelo rigor com que os factos são descritos, nunca deixou de ser convocada e estudada ao longo dos tempos, revelando, frequentemente, uma flagrante e surpreendente actualidade.
Ao lermos a narrativa de Tucídides, o que mais impressiona, nesta guerra que se prolonga por 27 anos, entre 431 a.C. e 404 a.C., causando a morte de milhares de civis e o fim da hegemonia de Atenas sobre o Mar Egeu e boa parte da Grécia, é o complexo de superioridade e a arrogância imperial da Cidade-Estado democrática. Não só em relação aos seus inimigos - Esparta e as outras Cidades-Estados oligárguicas, aliadas na Liga do Peloponeso -, mas também em relação a Cidades-Estados que pretendem ser neutrais e, sobretudo, em relação às Cidades-Estados aliadas de Atenas na Confederação de Delos, vergadas pelo peso dos tributos e politicamente tratadas como súbditas.
Na célebre oração fúnebre que Tucídides atribui a Péricles, em homenagem aos atenienses mortos no primeiro ano da Guerra do Peloponeso, o que avulta não é apenas o extraordinário elogio da democracia e da liberdade. É, acima de tudo, a justificação da guerra invocando a superioridade moral de Atenas, que legitima o direito de impor a sua hegemonia a todos os outros. É a «retórica da prevaricação», como lhe chama Umberto Eco: nós temos o direito de impor a nossa força aos outros porque encarnamos a melhor forma de governo que existe. O paralelo com a actualidade é irresistível.
Como salienta Jacqueline de Romilly, no livro sobre Alcibiade ou les dangers de l’ambition, Péricles afirmava não ser possível renunciar ao império e abandoná-lo, mas não pensava em conquistas. Mais ambicioso será o seu pupilo Alcibíades, 15 anos após a morte de Péricles (429 a.C.), ao afirmar que a própria existência do império o obriga a multiplicar as suas intervenções, não podendo, por isso, Atenas renunciar às conquistas. Alcibíades defende a ocupação da Sicília, não só por causa das suas riquezas (é a maior fornecedora de trigo para toda a Grécia) mas também pela necessidade de expansão do imperialismo ateniense. A expedição à Sicília será um completo desastre.
Entre o trigo siciliano e o petróleo iraquiano distam 24 séculos. Os conselheiros neoconservadores de Bush leram Tucídides e quiseram corrigir a História, convencidos de que ela não se repete. Desprezaram os alertas do estratego Nícias, sobre os riscos da expedição à Sicília. Mas o chefe do estado-maior do Exército britânico decidiu assumir agora o papel de Nícias, defendendo a retirada do Iraque, «sometime soon»!

Imagem: Tucídides

Adapt. «DN» 27 Out 06

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2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Eu fico sempre fascinado com a cultura de algumas pessoas.

O que elas sabem : Guerra do Peloponeso, Tucídides, Liga do Peloponeso, Confederação de Delos, Péricles, Umberto Eco, Jacqueline de Romilly, Alcibíades, Nícias ... enfim, possivelmente muito mais. Umas cabecinhas que faz favor !

Quando penso que a minha miserável pessoa apenas sabe umas coisitas de Matemática, Física, Química, Electromagnetismo, Termodinâmica, Astronomia, Macro-economia, Contabilidade, enfim, coisas banais e sem importância, fico sempre com pena de não ser uma pessoa ilustrada.

Claro que no final de muitos dos textos dos cabecinhas-que-faz-favor, acabo por descobrir que a exibição de tantos conhecimentos servia apenas para chegar ao petróleo iraquiano, aos conselheiros neoconservadores de Bush, ao chefe do estado-maior do Exército britânico e à retirada do Iraque. A Matemática não me levava tão longe. Ainda bem ...

Jorge Pacheco Oliveira

28 de outubro de 2006 às 23:49  
Anonymous Anónimo said...

Caro Alfredo Barroso

Fique descansado que os seus conhecimentos de História não me irritam nada. Tenho muito apreço pela História e por muitas outras matérias do campo das letras. Mas como sou engenheiro, gosto das coisas mais directas, sem rodriguinhos. Se era para atacar o Bush e a aventura no Iraque, não vejo que fosse necessário tanta prosa erudita. Quase gastou os 3.000 caracteres de que dispunha antes de chegar ao propósito do seu artigo.

Obviamente, não lhe escondo aquilo que certamente já intuiu na minha intervenção : eu não subscrevo as posições anti-Bush. Pelo menos as posições do género das suas, muito socialisticamente correctas.

Porque eu estou do lado dos norte americanos. Mesmo com algumas discordâncias, eles fazem parte do meu universo civilizacional. E não me esqueço que muitos milhões dos seus jovens já perderam a vida para defender uma Europa liderada por governos cobardes.

Aquilo que critico à Administração norte-americana na invasão do Iraque é o facto de não ter utilizado uma força muito mais destruidora para aniquilar todas as veleidades do inimigo.

Quando se vai para uma guerra não se pode deixar o inimigo em condições de retaliar e de matar os nossos soldados da forma inglória a que se assiste no Iraque. Se eram necessárias armas nucleares tácticas, pois que fossem utilizadas. A situação que se está a viver é perigosíssima porque encoraja aquela corja de bárbaros contra as forças americanas. E de seguida contra todos nós. Ou julga que eles vão ter cuidado em pôr as bombas de forma a não o atingirem a si e à sua família?

Jorge Pacheco Oliveira

29 de outubro de 2006 às 17:15  

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