Da exclusão à corrupção (*)
DESDE que é Presidente da República, Cavaco Silva já discursou em quatro ocasiões especiais: no acto de posse em Março, no 25 de Abril, no 10 de Junho e agora no 5 de Outubro. De uma maneira geral os discursos foram geradores do aplauso bem-pensante. Nem politicamente correctos nem exactamente o seu contrário, os temas escolhidos pelo novo Presidente da República têm tanto de surpreendentes como de consensuais. A defesa da democracia nascida com o 25 de Abril, o respeito pela Constituição da República Portuguesa, a chamada de atenção para com os excluídos do Portugal de sucesso e agora o combate à corrupção são tudo menos impopulares. Aqui não há austeridade. Como diria Baltazar Gracián, "os sábios não se cansam do aplauso popular".
À primeira vista, a celebração do 5 de Outubro mereceria um discurso com mais fôlego político, tanto mais que os feriados que se seguem até ao próximo 25 de Abril são quase todos filhos do calendário religioso. O tema da corrupção não estaria mal na alocução do 1.º de Janeiro, pois o Presidente não fala pelo Natal, e não se associaria tal flagelo ao regime republicano em particular, tendo em conta que o abuso de poder, local ou central, não conhece datas desde que os mesmos homens ocupem por demasiado tempo os mesmos lugares. Mas tomemos a escolha do tema de combate à corrupção como uma homenagem autêntica às virtudes republicanas e não como um tema para fazer esquecer um acontecimento que ainda nos vai poupar bastantes dissabores no futuro. E nem todos os povos poderão dizer o mesmo...
A escolha do tema da corrupção nesta data só se explica ou pela particular actualidade dele, ou pela especial dificuldade no seu combate, ou pela sua ausência explícita no pacto sobre a justiça assinado há semanas entre os partidos que alternam no Governo.
Quanto à actualidade do tema, basta recordar que Mário Soares, quando era primeiro- -ministro do bloco central, incentivou a criação de uma Alta Autoridade contra a Corrupção, que foi presidida por Costa Brás entre 1983 e 1993. Perante a ineficácia do órgão e as lacunas do Código Penal, o militar de Abril pediu à Assembleia que escolhesse entre o reforço de competências ou a extinção da Alta Autoridade. Como escreveu António José Teixeira no sábado, "PSD e PS nem pestanejaram. Extinguiu-se." Só faltou acrescentar que o líder do PSD era chefe de um Governo maioritário e se chamava Cavaco Silva.
Todos falam, é claro, da especial dificuldade do combate à corrupção, mas recentemente só o deputado João Cravinho apresentou algumas medidas que, à primeira vista, parecem mais dirigidas aos enriquecimentos súbitos e ilícitos do que aos grandes estrategas do tráfico de influências com créditos firmados.
É verdade, e para apresentar a possível terceira razão do tema presidencial de 5 de Outubro, a de o recente acordo sobre a justiça firmado entre o PS e o PSD não ter dado explicitamente relevância à questão, embora tenha sido muito saudado também pelos concêntricos entusiastas do discurso presidencial. Com efeito, o pacto sobre a justiça só foi possível porque tratava de uma questão de poder e se destinava a reequilibrar a respectiva balança entre o legislativo, o executivo e o judicial. Quem não se deu conta desta característica do pacto merece figurar na ordem dos anjos. Claro que esse reequilíbrio tomou o nome da moda de combate ao corporativismo, e de facto durante mais de 20 anos o poder judicial esteve demasiado cativo dos seus próprios corpos.
Sobre pactos de regime é regra existirem aqueles que dão poder às partes contratantes e serem repudiados nas matérias em que há votos em disputa. O pacto sobre a justiça deu poder ao PS e ao PSD e dará mais algum ao legislativo e ao executivo. O Presidente da República com os seus discursos sobre a exclusão social e a corrupção amealha prestígio e votos. Como se verifica, a "cooperação estratégica" é positiva para os seus principais agentes nesta fase política. O que farão todos com tanto poder é outra história.
Embora o Presidente da República siga a boa norma da retórica desde Aristóteles ao padre António Vieira de tratar um só tema no seu discurso, agradou-me sobremaneira aquela outra declaração sobre a livre investigação em História, e a sua oposição à existência de uma história oficial do regime republicano, como certamente das Descobertas e da Expansão Colonial, da Inquisição e da Ditadura Financeira! Ou alguém receia apenas o centenário da República?
-(*) Crónica de José Medeiros Ferreira no «DN» de hoje, aqui transcrita com sua autorização
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