COM VISTA AO NATAL
DO DESTINO de muitos enjeitados pouco ou nada se sabe, depois de os largarem ao deus dará, na roda, na lixeira ou na mata. No Conto do Natal de João de Araújo Correia, D. Rita de Cássia - governanta do rico e avarento Comendador Clarimundo, que exalava «o cheiro do ouro», mas que «bastardos de portas dentro é que não queria» - já enjeitara para aí uma dúzia deles, com a ajuda da parteira, «uma comadrona mais velha do que a sé de Braga». Numa véspera de Natal, a governanta «deitou cá fora um rapagão loiro e rosado como quem o fizera» e a parteira pôs-se a caminho, de «embrulho ao colo». Mas a inclemência do tempo, a lama e o lodo não a ajudaram nada. «Começou a caminhar às cegas», perdeu a tramontana e, após várias peripécias e rebates de consciência, acabou a depositar o rapagão num degrau cimeiro do «altar-mor da capelinha do povo». Na missa de Natal, um «desbocado e caritativo padre» subiu ao altar muito descomposto e pregou um sermão esmaltado de obscenidades e muito choro, que os fiéis acompanharam. Mas, ao proclamar que «este ano o Menino é de carne e osso» e «quem me dera apanhar aqui a cadela que o enjeitou!», o Comendador Clarimundo decidiu, por uma vez, reconhecer a paternidade, prometendo adoptar o rapagão e casar com a sua governanta. Assim, terá ganho o reino dos céus e afugentado parentes que lhe farejavam o ouro, desiludidos com a perda da futura herança. Só não se fica a saber, neste belo «conto bárbaro» de João de Araújo Correia, o que terá sucedido à outra dúzia de enjeitados pelo avarento.
No Natal de Miguel Torga, avulta «um pobre já acostumado a quantas tropelias a sorte quer»: o velho Garrinchas, que quer ir «consoar à manjedoira nativa». Mas já lhe pesam os 75 anos e de nada lhe vale atravessar a serra «a mata-cavalos, a correr contra o tempo e contra a idade, com o coração a refilar». Por isso fica-se pelo adro da ermida da Senhora dos Prazeres. Como precisa de fogueira, vai roubar papel à sacristia e escavaca «o andor da procissão arrumado a um canto», para fazer lenha. Quando «a madeira seca do palanquim ardia que regalava» e ele se aprestava a cear um bom naco de presunto, «a alma deu-lhe um rebate». Foi perguntar à Santa se era servida, esta «pareceu sorrir-lhe», ele tirou a imagem do altar e trouxe-a para junto da fogueira. E assim consoaram os três: a Senhora dos Prazeres a fazer de quem era; o pequeno ao colo dela, «a mesma coisa»; e «o velho Garrinchas», reconhecendo-se «embora indigno», a fazer de São José.
Mais insólito é o conto de Alexandre O’Neill «com vista ao próximo Natal». São Exercícios de Auto-Apoucamento praticados por Valério, o Lèrinho da sua Quinhas, que até se enfia por «uma perna de calça sustentando-se em pé, sem, aparentemente, homem lá dentro». Lèrinho prepara assim uma surpresa ao filho, o Necas, auto-apoucando-se na «amurada do sapato» de Natal. Mas dá para o torto. Com um «órfão vivo» horrorizado a soluçar no regaço da mãe: «Sa… Sa… Saiu-me o… o… o pai no sa… sa… sapato!». E a Quinhas a prometer-lhe que «o pai voltaria a crescer, a crescer»… Bom Natal!
Adapt. «DN» - 22.Dezembro.2006
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