29.1.07

Os Desafios aos Poderes

EM 1962, com as Universidades de Lisboa e Coimbra em greve, os dirigentes associativos foram inesperadamente convocados para S. Bento: Correia de Oliveira, Ministro da Presidência e número dois do regime queria falar com eles.
Contudo não se tratava de negociar uma saída para a greve na Universidade – um facto então inaudito dado o pequeno grupo de privilegiados que nessa altura a frequentavam unidos num movimento subversivo. A reunião era para lhes transmitir a posição do Governo:
“O poder não pode ser desafiado”.
Era, viu-se depois, um poder já muito enfraquecido.
Só um poder muito frágil, corroído pela sua falta de legitimidade, pode sentir-se desafiado porque uns milhares de estudantes deixam de ir às aulas num protesto moral, simbólico e sem qualquer poder efectivo.
O mesmo que se passa com o sargento de Torres Novas.
Tudo o que se está a passar – um sargento que entre a obediência ao tribunal e a cadeia escolhe a cadeia para proteger a sua filha – a intervenção espontânea de juristas com as mais diversas posições, os abaixo-assinados e as tomadas de posição individual tem um sabor estranho, recordam outros tempos e outras campanhas.
Não vale a pena discutir a questão jurídica como fazem os magistrados que vão à televisão defender o colega despejando conceitos mal assimilados. Toda a gente já percebeu que os seis anos de cadeia e os 30.000 euros de indemnização, enorme para os critérios habituais, só aconteceu porque os juízes se sentiram desafiados.
Desafiados pelos pais adoptivos dispostos a tudo para defender a criança comportando-se como verdadeiros pais, desafiados pela polícia que não a consegue encontrar, agora desafiados pela opinião pública que não percebe as complexidades processuais do caso e fala do que não sabe.
Mas só com uma tremenda crise de legitimidade, uma desconfiança profunda da opinião pública a respeito do poder judicial, isto se pode passar.
Que se passa com os juízes portugueses que não conseguem fazer justiça em nome do povo? Como foi possível quebrar-se aquele laço profundo que nos leva a reconhecermo-nos na decisão judicial mesmo quando dela discordamos?
Tudo isto é mais um sintoma do que uma doença: as reacções autoritárias, a arrogância judicial perante pessoas indefesas juntamente com a subserviência para com os poderosos têm minado a relação de confiança entre a comunidade e os magistrados.
Milhares de decisões sérias por magistrados competentes que só os interessados conhecem podem ver os seus efeitos destruídos por duas ou três decisões impensadas que de repente são títulos de jornais. É muito mais fácil destruir a confiança do que construí-la.
Em especial quando o mesmo presidente do sindicato dos juízes que teve uma posição exemplar em relação aos juízes do futebol ao constituir-se em advogado oficioso de uma colega que exorbitou, vem transformar um erro individual numa posição da classe.
O Juiz Robert Jackson que participou no julgamento de Nuremberga dizia que os tribunais julgam os casos, mas os casos também julgam os tribunais. Para um caso como este não se pode encontrar uma citação mais adequada.
Adenda: ficámos a saber no caso de Sintra que os beneméritos que se dedicam ao contrabando têm advogados pagos com os nossos impostos.
É justo: todos sabemos que economia está em crise e nem o sector do contrabando escapa. Além disso qualquer contrabandista que se preze tem sempre no bolso um atestado de pobreza passado pela sua Junta de Freguesia.
«Expresso» - 27 Jan 07

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1 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Excelente artigo!

29 de janeiro de 2007 às 11:35  

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