25.1.07

A Paixão do Futebol

SÓ DEPOIS DOS DEZ ANOS comecei a perceber o motivo de, até aí, nunca me ter sido recusado lugar nas equipas de futebol que nasciam espontâneas entre garotos. Talvez sentisse a falta de entusiasmo dos parceiros, mas no calor da disputa não via os esgares de dor que os erros de pontaria frequentemente provocavam quando, por inabilidade, a bola que tinha como alvo era substituída pelas canelas dos companheiros que se atravessavam na trajectória do meu pé.
Nunca, antes, me tinha interrogado sobre as qualidades para um desporto que exercia em mim uma atracção irresistível. Jamais me dera conta da pouca habilidade que pudesse ter. Pelo contrário, algumas vezes tinham sido os outros a perguntar se não queria jogar à bola e a procurar convencer-me para ficar à baliza, lugar que a minha impaciência desprezava e eles tinham como o mais adequado ao meu perfil.
Só então me dei conta de ter sido dono da única bola, durante a instrução primária.
Depois, no liceu, perdida a protecção materna e o respeito devido, medroso e inábil, fui-me transformando no bode expiatório dos insucessos alheios, alvo de tareias com que os outros garotos se vingavam de um medíocre menos a Português ou de um mau grande a Matemática, numa crescente fama que ultrapassou a turma, a qual em breve perdeu o monopólio das sovas a mim destinadas. Era medroso, já o disse, não é por me gabar, e a alcunha de Nené era um incentivo eficaz para avanços mesmo dos mais timoratos.
Foram dois anos de excelentes notas e sólidas tareias, umas e outras em vias de extinção. As tareias terminaram quando reagi ao medo patológico e passei de bombo da festa a carrasco que desfeiteou dois colegas, em momentos diferentes, com violenta carga de pontapés fortalecidos pelo susto perante o gáudio de outros colegas que, em vez de me ovacionarem, apuparam as vítimas com expressões tão demolidoras como até do Nené te deixaste bater. Quanto às notas tive de esforçar-me menos, bastou o absentismo escolar, tendo quem respondesse por mim à chamada, abjurar os livros e começar a subir na consideração dos colegas, já ressarcido da ignomínia de ter frequentado o quadro de honra.
Alguns benefícios tive, pois, além de notas mais toleráveis pelos idolatrados cábulas, estes acolheram-me generosamente e não me deixei marcar por uma plêiade de incompetências pedagógicas nem tive necessidade de aprofundar a ciência sobre os estames da papoila e o órgão sexual da minhoca, ensinamentos que faziam corar os professores e emudecer de vergonha os alunos pelo carácter deletério, precursor da educação sexual que algumas décadas depois viria a ser objecto de reivindicação. Também me defendi de decorar o clima dos vários países, a fauna e a flora das colónias que a história se encarregaria de transformar em nações e outras inutilidades que levam as pessoas de então a repetir nostálgicas – nesse tempo é que se aprendia!
Mas o futebol continuou a exercer em mim uma irresistível atracção e a permitir-me suportar estoicamente o escrutínio dos outros jogadores, cada vez mais difícil, para participar. Era comum estarem seis ou sete garotos de um lado e menos um do outro, única situação em que podia aspirar à selecção. Dizia-me a experiência que o regozijo seria de pouca dura e que à primeira canelada era corrido à chapada e a pontapé, para bem longe, negando-me o simples privilégio de espectador. Mesmo assim aguardava ansioso o momento da selecção.
A minha entrada era sempre precedida de silêncios estranhos e insuportáveis delongas, apesar da evidente utilidade de as equipas começarem patas em número de jogadores. Por fim alguém dizia, com ar de enfado, aquela merda que jogue, decisão que me inundava de felicidade não obstante os termos pouco estimulantes e o epíteto moderadamente depreciativo com que o convite era formulado.
Do livro «Pedras Soltas», de Carlos Barroco Esperança. Oferta do autor aos leitores do «SORUMBÁTICO»