AGRURAS E ALEGRIAS DO ANÚNCIO CLASSIFICADO
Dizem dela, velha mesmo velha, que vive triste e sozinha, apesar de partilhar a casa grande e escura com o casal sem filhos e com o cavalheiro de posição.
A velha, o casal sem filhos e o cavalheiro de posição vivem todos sob o mesmo tecto, mas na verdade sozinhos, como deles dizem quem os conhece, porque é compreensível que embora coabitando se possa considerar que viva sozinha uma velha mesmo velha, que viu morrer toda a família e todos os amigos, um casal sem filhos com serventia de cozinha e direito a um banho por semana, e um cavalheiro de posição que ocupa um quarto independente, com lavatório de esmalte, a condizer com o bidé e com o balde para a água, por detrás da porta para a escada.
Dizem, portanto, de todos e de cada um deles, que vivem sozinhos – mas não é inteiramente verdade porque, de facto, estão a acompanhá-Ios os espíritos, os fantasmas, ou as almas penadas dos desaparecidos naquele casarão, e que assim podem ser chamados consoante a crença ou a credulidade de cada um.
Os espíritos, fantasmas ou almas penadas despertam sobretudo sons nocturnos, rangidelas e estalidos, toques de cristal no aparador e sarrabulhos inexplicáveis de que ninguém fala na manhã seguinte, nem nunca, naquela casa.
Quando estão todos em casa – a velha mesmo velha, o casal sem filhos e o cavalheiro de posição - não falam entre si, ou apenas se limitam, muito raramente e por motivos práticos, a trocar algumas palavras uns com os outros. Actualmente, nem sequer falam quando ouvem os risos risinhos e gargalhadas que, ao princípio, não entendiam donde vinham nem percebiam o que significavam. Uma tarde, a mulher do casal sem filhos perguntou à velha mesmo velha o que era aquilo, e o cavalheiro de posição veio num alvoroço à cozinha a saber do que se tratava, mas nem a um nem a outro a velha deu qualquer explicação, refugiando-se na posição definitiva de que ela não ouvia nada nem sabia a que se estavam a referir.
Mas a velha sabia do que se tratava. Fora ela quem descobrira o mistério dos risos, risinhos, gargalhadas, estertores, sussurros e gritos. Identificara subitamente a voz duma antiga porteira de Benfica que costumava passar algumas matinées com um construtor civil no quarto independente, muitos, muitos anos atrás.
A pouco e pouco, uns após outros, a velha mesmo velha fora reconhecendo os sons, identificando as vozes, recordando as situações que muitos anos antes tinha ouvido daquele quarto maldito com porta para a escada. Situações que, num caso ou noutro, a tinham deixado até perturbada.
A velha não contou nada a ninguém. Quando a mulher do casal sem filhos lhe perguntou, por uma última vez, esbaforida, o que era aquilo, e num sábado à tarde o cavalheiro de posição apareceu na sala de jantar em pijama a dizer que não aguentava aquela gritaria, a velha mesmo velha desfez um sorriso enigmático e com a frieza distante e intrujona que só os velhos sabem ter disse, duma vez por todas, que não sabia do que estavam a falar e que quem não estivesse bem que se mudasse. Ponto final.
Desde então deixaram todos de fazer perguntas e convenceram-se uns aos outros que aqueles sons saíam das paredes, que as casas conservam vida própria e que, umas mais do que outras, têm as suas próprias recordações. Aqueles sons, diziam uns para os outros, deviam ser isso – recordações da casa, vidas a escorrer das paredes como a humidade no Inverno, enfim, coisas tão antigas que nem a velha mesmo velha sabia.
Ao certo, ao certo, só a velha mesmo velha é que sabia, de facto. E até hoje não o revelou a ninguém. Mas na sua manha, que lhe dá para o que lhe convém, ela sabe que os gritos e gritinhos, os risos e risinhos, todas aquelas gargalhadas, eram de quem há muitos anos passou tardes e noites de amores rápidos ou fortuitos no quartinho com porta para a escada.
Ela não diz a ninguém, como também esconde que quem mexe no aparador é a alma do seu tio Ernesto que se enforcou na nespereira do quintal. Mas sabe que os murmúrios e gritinhos eram de quando aquele quarto se destinava a casais que vinham a Lisboa, antes de passar a ser alugado a cavalheiros de posição.
Lisboa, 1987
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