19.2.07

Os Touros de Morte

Por Carlos Barroco Esperança
PAIRA A AMEAÇA de um projecto de lei que cria uma excepção para “touros de morte” em Barrancos. O líder parlamentar centrista (Telmo Correia) anunciou que o diploma permitirá a morte dos touros nos casos em que a existência de uma tradição ininterrupta seja comprovada pelas autarquias.
Desde o regime monárquico até à ditadura a que o 25 de Abril pôs termo, passando pela pena de morte, a escravatura, a Inquisição e a censura, não há estultícia, crueldade ou patifaria que a existência de uma tradição ininterrupta não legitimasse.
Os “touros de morte” são o que são – uma barbaridade para gáudio de quem descarrega no bicho a violência que transporta, violência catalisada em regozijo dos que a praticam e dos que assistem. Quanto às pegas, eu próprio gosto, tomando o partido do touro, porque há muito me habituei a colocar-me contra a força.
Já quanto à justificação, seja do que for, com recurso à tradição, confesso que arranha a inteligência e fere a sensibilidade. Dispenso-me de enumerar um nunca mais acabar de hábitos sórdidos que o humanismo acabou por erradicar. Mas, ainda assim, não deixarei de lembrar que é tradição em meios rurais portugueses matar um irmão ou cunhado por motivo de marcos, águas ou serventias cuja posse se reivindica. Não sei se esta prática ancestral que cai sob a alçada do Código Penal poderá ser legalizada onde o Presidente da Câmara comprove, sem lugar a dúvidas, ser uma tradição local genuína, ainda que não praticada todos os dias. Como hábito ancestral eximir-se-á assim ao tribunal, sobretudo se a arma do crime for uma sachola brandida com convicção na cabeça da vítima, como é apanágio da mais lídima tradição lusitana.
Na Índia ainda subsiste em meios rurais o nobre hábito de a viúva acompanhar o marido à pira funerária, tradição que os familiares do defunto se esforçam por perpetuar. Mas isso tem custado alguns amargos em tribunal.
Há terras lusitanas onde permanece a louvável tradição de perseguir a mulher que abandone o marido e sujeitá-la a diversas humilhações para execrar o acto e desincentivar o exemplo. Será conferida autoridade ao presidente da Câmara autóctone para legitimar esta tradição indígena?
Junho de 2002

Etiquetas: