16.3.07

Doméstica

ESTÁVAMOS NA CHINA, finalmente. Após quinze horas de viagem que incluíam transbordo em Londres, treze horas seguidas de avião e uma espécie de cacilheiro grande chamado jet foil que unia Hong-Kong a Macau, tínhamos chegado ao destino.
No jet foil uma observação vergonhosa passava nos avisos luminosos do barco:
“- Cuidado com os carteiristas!”
Em chinês, inglês e português, por mor das confusões. Porque, ao que parece, onde quer que haja um bocadinho de sangue portuga, pode haver desvios de propriedade. Coisa pouca, uma carteirita, uma pulseira, um relógio... Mas o suficiente para estragar uma viagem. Imaginem perdermos o bilhete de avião, por exemplo...
Minha mulher queria à viva força comer cobra. A minha sorte foi que, naquela altura do ano mais quente, cobra era considerado altamente desaconselhado, pois aquece e faz suar com a sua carne demasiado gorda e energética. Os restaurantes explicaram. Não era a época. Ainda bem. De resto aprendi que ali se consumia tudo o que mexesse. Baratas, cobras, gatos, cães, macacos, tudo morto à vista do cliente.
Um mercado inesquecível, podem crer.
Às portas da China, a velha bandeira verde e vermelha comoveu-me. No ano seguinte seria arreada pela última vez. A concessão do velho mandarim expirava no correr dos séculos. Fim negociado como quem acabasse com uma colónia de férias do Inatel. O donativo dado numa noite de eflúvios de prazer, estilo “fiquem o tempo que quiserem” assim terminaria em breve, após uns séculos de história, jogo e alcova.
Mas às portas da China, sob a bandeira, uma frase se despedia de nós. “A Pátria honrai que a Pátria vos contempla”. Tanto bastou para que um arrepio corresse a espinha neste velho cripto-português, que é o sítio onde os intelectuais dizem que passa a coluna vertebral. Zona fulcral do sentir, a espinha, no resumido sentir do povo.
Os cheiros eram desagradáveis, a humidade elevada, o calor fazia suar permanentemente. O concerto correra bem, era dia de descomprimir, visitar Zuhai, uma espécie de Badajoz, logo ali ao lado. Todos alinhámos: - vamos embora!...
Connosco, um grupo de portugueses cumpria as formalidades para tirar o visto precário e poder entrar no reino da Democracia Popular, o que quer que isso seja.
Uma senhora, de visita ao seu marido que trabalhava na Polícia de Macau, deixou em branco o espaço da profissão. Realmente, como nos explicou, ali não estava a fazer nada. Comia na Messe da Polícia, tratamento de roupas completo, enfim, era apenas uma turista. Como tal, deixou o espaço em branco.
Não houve contemplações – o visto foi-lhe recusado. Pessoa sem profissão nunca seria autorizada a entrar em tal país. Poucas vergonhas capitalistas, vícios de velhos impérios caducos, nem pensar. Perturbada e desgostosa por ser a única a não ter visto, perguntou por gestos o que se passava. Eles, por gestos também – embora explicassem tudo com muitas palavras, como se compreende, nada percebíamos... – lá foram dizendo que, se não tinha profissão, não podia entrar...
A pobre senhora explicou tudo devagar, tudo de novo. Que o marido era polícia, estava lá há dezoito meses e que lhe tinham autorizado uma visita de dois meses. Estava em Macau sem fazer nada. Desocupada. Sem profissão. Queria visitar a China. Aquela cidade só – Zuhai, ali, perto da fronteira. Curiosidade. Voltava ao fim do dia. Jantar com o marido. Não estava interessada em lá ficar, estivessem descansados. Que raio havia de escrever no sítio do emprego?
De novo foram para dentro com a explicação, em português muito lento, supostamente entendida. Mas ao que parece não perceberam nada. Veio o chefe do posto fronteiriço explicar em chinês oficial que ali não podia haver excepções. Ou tinha profissão declarada ou não passavam autorização. E apontava minucioso para o espaço deixado em branco. Ocorreu-me dizer-lhe:
“- Olhe, ponha aí qualquer coisa – turista, doméstica, sei lá...”
A senhora aceitou a sugestão. Escreveu no espacinho reservado à profissão: - doméstica. O funcionário militar sorriu, vitorioso, cioso de ter protegido o Império da entrada de um perigoso inimigo. O seu sorriso rasgado precedeu uma forte carimbadela. Estava aprovada. Podia passar. Bem sabia ele o que é que ali estava escrito!... Em branco é que não podia ser. Assim, tudo bem.
Ficámos todos a saber que:
1-Todas as domésticas desocupadas em turismo pela China são bem-vindas.
2- Que, com tamanha população, todos os espaços, mesmo nos impressos, têm que ser devidamente preenchidos.
3- Que não há lugar em tal terra para gabirus que andem na vida sem saber bem ao certo o que andam a fazer.
4- O gosto pela embirrocracia é afinal igual na mentalidade de todos os polícias chatos do planeta.
E, ao que parece, já agora, que na China, oficialmente, não pode haver desempregados.

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