27.3.07

Eça e Bento XVI - V

(Final)
Se tivéssemos tempo de ir à China ou a Ceilão, V. toparia com o mesmo fenómeno no Budismo. Dentro dessa Religião foi elaborada a mais alta das Metafísicas, a mais nobre das Morais: mas em todas as raças em que ele penetrou, nas bárbaras ou nas cultas, nas hordas do Nepal ou no mandarinato chinês, ele consistiu sempre para as multidões em ritos, cerimónias, práticas - a mais conhecida das quais é o moinho de rezar. V. nunca lidou com este moinho? É lamentavelmente parecido com o moinho de café em todos os países budistas. V. o verá colocado nas ruas das cidades, nas encruzilhadas do campo, para que o devoto ao passar, dando duas voltas à manivela, possa fazer chocalhar dentro as orações escritas e comunicar com o Buda, que por esse acto de cortesia transcendente «lhe ficará grato e lhe aumentará os seus bens».
Nem o Catolicismo, nem o Budismo, vão por este facto em decadência. Ao contrário! Estão no seu estado natural e normal de Religião. Uma Religião, quanto mais se materializa, mais se populariza - e portanto mais se diviniza. Não se espante! Quero dizer que, quanto mais se desembaraça dos seus elementos intelectuais de Teologia, de Moral, de Humanitarismo, etc., repelindo-os para as suas regiões naturais que são a Filosofia, a Ética e a Poesia, tanto mais coloca o povo face a face com o seu Deus, numa união directa e simples, tão fácil de realizar que, por um mero dobrar de joelhos, um mero balbuciar de Padre-Nossos, o homem absoluto que está no Céu vem ao encontro do homem transitório que está na Terra. Ora este encontro é o facto essencialmente divino da Religião. E quanto mais ele se materializa - mais ela na realidade se diviniza.
V. porém dirá (e de facto o diz): «Tornemos essa comunicação puramente espiritual, e que, despida de toda a exterioridade litúrgica, ela seja apenas como o espírito humano, falando ao espírito divino». Mas para isso é necessário que venha o Milénio - em que cada cavador de enxada seja um filósofo, um pensador. E quando esse Milénio detestável chegar, e cada tipóia de praça for governada por um Mallebranche, terá V. ainda de ajuntar a esta perfeita humanidade masculina, uma nova humanidade feminina, fisiologicamente diferente da que hoje embeleza a Terra. Porque enquanto houver uma mulher constituída física, intelectual e moralmente como a que Jeová, com uma tão grande inspiração de artista, fez da costela de Adão, - haverá sempre ao lado dela, para uso da sua fraqueza, um altar, uma imagem e um padre.
Para a vasta massa humana, em todos os tempos, pagã, budista, cristã, maometana, selvagem ou culta, a Religião terá sempre por fim, na sua essência, a súplica dos favores divinos e o afastamento da cólera divina; e, como instrumentação material para realizar estes objectos, o templo, o padre, o altar, os ofícios, a vestimenta, a imagem. Pergunte a qualquer mediano homem saído da turba, que não seja um filósofo, ou um moralista, ou um místico, o que é Religião. O inglês dirá: - «É ir ao serviço ao domingo, bem vestido, cantar hinos». O hindu dirá: - «É fazer poojah todos os dias e dar o tributo ao Mahadeo». O africano dirá: - «É oferecer ao Mulungu, a sua ração de farinha e óleo». O minhoto dirá: - «É ouvir missa, rezar as contas, jejuar a sexta-feira, comungar pela Páscoa». E todos terão razão, grandemente! Porque o seu objecto, como seres religiosos, está todo em comunicar com Deus, e esses são os meios de comunicação que os seus respectivos estados de civilização e as respectivas liturgias que deles saíram, lhes fornecem. Voilà! Para V., está claro, e para outros espíritos de eleição, a Religião é outra coisa - como já era outra coisa em Atenas para Sócrates e em Roma para Séneca. Mas as multidões humanas não são compostas de Sócrates e de Sénecas - bem felizmente para elas, e para os que as governam, incluindo V. que as pretende governar!
De resto, não se desconsole, amigo! Mesmo entre os simples há modos de ser religiosos, inteiramente despidos de Liturgia e de exterioridades rituais. Um presenciei eu, deliciosamente puro e íntimo. Foi nas margens do Zambeze. Um chefe negro, por nome Lubenga, queria, nas vésperas de entrar em guerra com um chefe vizinho, comunicar com o seu Deus, com o seu Mulungu (que era, como sempre, um seu avô divinizado) . O recado ou pedido, porém, que desejava mandar à sua Divindade, não se podia transmitir através dos Feiticeiros e do seu cerimonial, tão graves e confidenciais matérias continha... Que faz Lubenga? Grita por um escravo: dá-lhe o recado, pausadamente, lentamente, ao ouvido: verifica bem que o escravo tudo compreendera, tudo retivera: e imediatamente arrebata um machado, decepa a cabeça do escravo, e brada tranquilamente - «parte»! A alma do escravo lá foi, como uma carta lacrada e selada, direita para o Céu, ao Mulungu. Mas daí a instantes o chefe, bate uma palmada aflita na testa, chama à pressa outro escravo, diz-lhe ao ouvido rápidas palavras, agarra o machado, separa-lhe a cabeça, e berra: - «Vai!».
Esquecera-lhe algum detalhe no seu pedido ao Mulungu... O segundo escravo era um pós-escrito...
Esta maneira simples de comunicar com Deus deve regozijar o seu coração. Amigo do dito
FRADIQUE
Eça de Queiroz - «A Correspondência de Fradique Mendes» - Carta a Guerra Junqueiro

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Eça, sempre certeiro!

Ed

27 de março de 2007 às 23:30  
Anonymous Anónimo said...

A palavra "mulungu" continua a ser utilizada em Moçambique. Significa "patrão branco" e vem do tempo colonial.

28 de março de 2007 às 10:10  

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