O CATITINHA
Por Alice Vieira
É SOBRETUDO QUANDO CHEGA O VERÃO e dou comigo a trincar uma azeda, com o sumo a escorrer-me pela cara abaixo (e a voz séria da minha neta, “ó avó, estás a pastar?!”) que me lembro mais dele.
Batia à minha porta sem hora marcada, a criada ia abrir, e dizia depois para a minha tia, numa voz reverente:
“Chegou o Senhor Catitinha.”
“Chegou o Senhor Catitinha.”
E ele entrava, imponente no seu fato preto, e com uma cabeleira branca que lhe dava o ar de um profeta. Estendia-me a mão — e lá íamos.
Descíamos a rua até ao Marquês de Pombal, e entrávamos no Parque Eduardo VII.
Descíamos a rua até ao Marquês de Pombal, e entrávamos no Parque Eduardo VII.
Há sessenta anos, o Parque Eduardo VII era, pelo menos aos meus olhos de criança, uma espécie de floresta encantada donde, a qualquer momento, poderiam sair as personagens que estavam nas histórias que ele me contava.
Então o Catitinha levava-me a conhecer as plantas, as árvores, dizia-me os seus nomes como se estivesse a apresentar-me velhos amigos, onde tinham nascido e como tinham vindo ali parar.
E, no final do passeio, vinha a chave de ouro: arrancava da terra meia dúzia de plantas com uma flor muito amarela, distribuía-as entre nós dois, e ali ficávamos, sentados, a apanhar sol e a trincar aqueles caules muito fininhos, donde saía o melhor sumo do mundo. Então ele ensinava-me que aquelas plantas se chamavam azedas, embora houvesse gente que lhes desse o nome de vinagreiras, e que fazia muito bem comê-las porque estavam cheias de vitamina C. Durante muitos anos, a vitamina C foi, para mim, aquele sumo que escorria do caule das flores amarelas que eu comia ao lado do Catitinha.
Depois voltámos para casa, ele entregava-me à minha tia, e saía em busca de outra criança do bairro. E eu ficava ansiosamente à espera que ele voltasse.
A seu respeito contavam-se estranhas histórias.
Que era meio louco.
Que tinha enlouquecido quando a filha única morrera atropelada e que era por isso que trazia sempre um apito no bolso e que apitava freneticamente de cada vez que atravessava a rua com as crianças ao lado, para que todos os carros parassem e não houvesse perigo.
Diziam também que era do norte, que se passeava pelos areais da Póvoa e de Vila do Conde, mas depois eu ia a praia de Cascais e ele também lá estava, e para mim ele passou a ser, na minha infância complicada e de poucos afectos, uma espécie de anjo protector, que vivia em toda a parte e chegava quando eu precisava dele.
Como qualquer anjo da guarda digno desse nome.
Como qualquer anjo da guarda digno desse nome.
Não sei o que eu teria sido se, durante esses primeiros anos da minha infância, ele não tivesse existido. Mas teria sido, seguramente, uma criança muito mais infeliz.
Mas ainda hoje não entendo como é que a minha tia, que dominava todos com mão de ferro e não me autorizava sequer a brincar com outras crianças da rua — me largava assim nas mãos daquele velho sem querer saber onde íamos, nem quando voltávamos.
É das poucas coisas que lhe agradecerei sempre.
E, evidentemente, o facto de ignorar palavras complicadas que, anos depois, haviam de estar na boca e nos receios de toda a gente.
Como, por exemplo, pedofilia.
«Jornal de Notícias» de 22 de Julho de 2007
Etiquetas: AV
2 Comments:
São muito boas, estas crónicas de Alice Vieira.
Ed
Na blogosfera (pelo menos na nossa) fazem falta mais textos como este, bem escritos e que nos fazem pensar.
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