26.10.07

A QUADRATURA DO CIRCO

O crime fiscal
Por Pedro Barroso
O ZECA ABOIM estava estremunhado. Ainda não acreditava.
Nunca tinha pensado que lhe acontecesse aquilo.
Os amigos, assim que souberam, deram-lhe os parabéns. Podia lá pensar-se nele como milionário! Aquilo era novidade da grossa!
Acontece, com efeito, que o Sr. Zeca, ou o Zequinhas, como mais desrespeitosamente alguns o tratavam, não sendo uma figura de topo na hierarquia do bairro, era decerto um comerciante respeitado.
Pessoa de boas contas, cidadão cumpridor, honesto, trabalhador, exemplar.
Até metia raiva a sua minúcia, o seu cuidado nos trocos, a sua atitude respeitadora, humilde, em nome do decoro, da moral e dos bons costumes.
Era de uma cortesia extrema para com todos os clientes, na sua maioria senhoras do bairro, mas também pessoas de fora.
A sua retrosaria destacava-se por uma limpeza e asseio invulgares. Uma arrumação acima de qualquer dúvida, uma atenção prestimosa, sempre com uma saudação educada e um sorriso de agradecimento pela preferência, tanto à chegada como à partida.
Acontece que o Zeca, homem já dos seus cinquenta anos, era um verdadeiro árbitro de elegâncias. Um modelo de bem servir mas também um modelo para os olhos de quem visse. Um bigode impecavelmente aparado, um corpo de bailarino, uma elegância no trato e nos gestos e unhas tratadas e polidas pela eterna e suspirante devoção da menina Kátia Irina - manicura que por ele mantinha um secreto e nunca correspondido amor há mais de uma dezena de anos. Acrescente-se ainda o fato irrepreensível, o porte direito, camisas irrepreensíveis, botões de punho, gravatas de seda, sapatos de verniz preto, tudo como um noivo eterno.
Toquei na ferida, sem querer. Era isso. Um noivo eterno.
Era, de facto, estranho que o Sr. Zeca nunca tivesse optado pelos caminhos do casamento, ou, pelo menos, de alguma conhecida conjugalidade visível.
Com a costumaz maldade dos depreciadores profissionais, alguns boatos circulavam sobre a sua excessiva educação e simpatia. Eram invariavelmente incluídos no pacote crítico a sua excitação permanente em relação a assuntos relacionados com a Floribela, a devoção religiosa pelo Tony Carreira, e até o seu avançado conhecimento em relação a matérias tão complexas como o ponto cruz ou a renda de bilros, cuja praticava, virtuoso, como lazer preferencial nos seus longos e solitários fins de semana.
O gel no cabelo repuxado, o permanente cuidado com a aparência e a sua amizade equívoca com o Hermínio da pastelaria, pareciam factores avulsos de alguma perturbação da masculinidade.
Invejas, está visto.
Há quem seja capaz de tudo para criar intrigas que de todo repudiamos.
Más-línguas, como é óbvio. Para mim o Sr. Zeca Aboim era muito homem.
As coisas não lhe teriam corrido bem nos primeiros amores, no seu devido tempo.
Mais tarde, uma breve relação sucumbira ao seu excessivo zelo com a forma de engomar peúgas e por outras intimidades ainda por esclarecer, ao que parece, relacionadas com o uso de roupa interior.
Desiludido e só, optara por uma abdicação voluntária de carácter social, um adeus às armas, digamos assim, mais ou menos alegre e conformado.
E a sua vida afectiva passara, sem dúvida, a ser a sua clientela.

Mas, se havia que comemorar-se a fortuna do Zequinhas, nada melhor que um grupo de espontâneos e numerosos amigos que decidiram, em segredo, fazer-lhe uma festa surpresa. O Zeca adorou a ideia e até chorou de alegria.
Chegado o dia ajustado, parecia um príncipe, todo encerado, um autêntico manequim.
Aquilo era um sonho. Só homens eram doze. O Zeca feliz.
Os marotos, no entanto, por sofismas longamente recalcados – e aposta secreta entre o Dantas e o Almada – haviam decidido, de algum modo, por à prova os dotes masculinos do novo milionário, preparando, à sua revelia, uma festa de jaez tipicamente machista, com ida a bar de meninas e tudo, assim tipo despedida de solteiro.
Já bastante bebido do pantagruélico jantar e interiormente perturbado por tal profusão de abraços fortes, repetidos a cada minuto, demonstrativos da mais profunda amizade, o Zequinhas lá ia no ar, perdendo a noção e o norte, seguindo para onde determinassem, disposto, por uma vez, a gozar a vida.
Foi quando o quiseram pôr a pagar uma dança privada com uma menina despida da cintura para cima que as coisas se complicaram. O homem não queria.
Só depois de muitas instâncias, e tendo os amigos feito ver que um dia não eram dias, “que diabo, uma vida de dever, havia que desfrutar das oportunidades!”, é que o Zeca, muito relutante, permitiu que tal menina se abanasse à sua frente.
Ficou visivelmente incomodado quando ela começou a despir o pouco que ainda trazia e ficou nuinha, em pelota, a dançar e ondular freneticamente a sua frente, num transe digno de cabaret rouge.
Ainda por cima, num frenesi, a escultural jovem beijou-o, e ele cobriu-se de rubores.
O Zeca estava hipnotizado, vermelho, cheio de suores. E fingia-se zangado a valer.
-“ Ele, um homem de respeito, imagine-se! No que aqueles malandros o tinham metido. Ai, se não fosse pela amizade que lhes tinha!...”
Os resultados foram um tanto ou quanto inconclusivos para as apostas efectuadas, pois infelizmente, um dos compinchas, mais indisposto, estatelou-se ao comprido num charco de cerveja no dito cujo Bar de alterne/Danceteria, e houve que o levar de urgência ao Hospital mais próximo com a cabeça partida.
Cosida a cabeça do descuidado amigo e após tantas emoções, foi com um enorme espanto de todos que o Zeca, educadamente, pediu que o levassem de volta ao Bar!
Estava, afinal, confirmado.
O cumpridor Zeca, o zeloso cidadão, o educado homem era mesmo macho.
Chegado ao local, porém, o Zeca disse:
- Não vale a pena saírem, que eu volto já.
Com efeito, não tinham decorrido dois minutos e ei-lo de volta sorridente, guardando qualquer coisa na carteira.
Era o recibozinho, que tinha esquecido. Dois euros o beijo e trinta da lap-dance.
Assim está bem. A coisa ficava legal.
Consigo, a contabilidade era também uma forma de higiene de vida.
E para crimes fiscais não contassem com ele.
Chiça.

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