23.10.07

A brigada do "então prove" e a falta de cultura democrática

Por João Miguel Tavares
CADA VEZ QUE ALGUÉM APARECE na comunicação social a fazer uma denúncia relevante há sempre um bando de picuinhas que exprime imediatamente a sua indignação com vozinha de contratenor: "Se assim é, então prove." Escondida atrás de um suposto rigor legalista e confundindo as regras do espaço público com as leis dos tribunais, a brigada do "então prove" é perigosamente conservadora e gosta do cheiro a pântano, crescendo à sombra da nossa falta de cultura democrática. Alguém resmunga sobre a corrupção nas câmaras? Então prove. Uma alminha aponta o dedo à incompetência na função pública? Então prove. Um desgraçado queixa-se das falhas no sistema judicial? Então prove. Como se cada vez que uma pessoa abrisse a boca para protestar tivesse obrigatoriamente de estar munido de dossiês e documentação em papel timbrado. Nove em dez vezes, o "então prove" é apenas uma forma mais ou menos elaborada de proteger o estado das coisas e tapar a boca a quem se queixa.
Certamente por causa deste exagerado calor de Outono, que sobreaquece as cabecinhas, quatro ou cinco pessoas importantes lembraram-se de ir para os jornais dizer o que lhes vai na alma. Não é normal. O normal é que as pessoas importantes dêem entrevistas mastigadas, soltando um recadito ali, uma frase cabalística acolá, num português remoído que depois é decifrado por meia dúzia de entendidos que peroram sobre o assunto durante dois ou três dias. Mas não foi isso que aconteceu com as últimas entrevistas de Catalina Pestana ou Pinto Monteiro, só para dar dois exemplos. Estes decidiram, por uma vez, dizer coisas relevantes e denunciar o que vai mal.
Resultado: uma carga violenta da brigada do "então prove". Catalina Pestana apontou o dedo à Casa Pia e apanhou traulitada dos antigos estudantes, que a mandaram ir-se queixar à polícia. Pinto Monteiro acusou o Ministério Público de feudalismo e imediatamente o sindicato dos magistrados pediu a sua cabeça; depois disse não saber se tinha o telefone sob escuta e a Ordem dos Advogados exigiu esclarecimentos "urgentes". É claro que convém a gente com responsabilidades não se passar da cabeça e vir para a praça pública ter conversas de café. Mas não é isso que tem acontecido. A ex-provedora da Casa Pia e o procurador-geral da República deram entrevistas valiosas e nomearam fragilidades inadmissíveis no nosso sistema. E, como de costume, o monstro do statu quo acordou para exigir que não o incomodem. Triste sociedade esta, que devota tanto amor à lei da rolha. E assim vamos andando aos caídos, muito caladinhos e compostinhos.
«DN» de 23 de Outubro de 2007-c.a.a.

Etiquetas:

5 Comments:

Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

De facto, qualquer pessoa pode dizer que há carteiristas à solta no Metro, e não é obrigado a provar a alegação em relação a este ou àquele "artista".

Tem toda a legitimidade para lançar esse alerta, quer para as possíveis vítimas, quer para as autoridades que - essas sim! - é que têm de actuar, com meios de repressão e prova.

Outra coisa seria essa pessoa vir para os jornais queixar-se de situações sobre as quais ela pode ser responsabilizada - quer pelo que fez, quer pelo que não fez (e podia ter feito).
Em boa parte, a entrevista de Pinto Monteiro tem dado que falar porque, precisamente, o cidadão-comum tem a ideia (errada? certa?) de que ele se está a queixar de realidades que é ele mesmo que tem de corrigir.

23 de outubro de 2007 às 14:38  
Blogger R. da Cunha said...

Há dias referi aqui a "inconveniência" de algumas afirmações do senhor PGR, na entrevista concedida ao Sol. No entanto, depois de ler e ouvir diversas opiniões, já tenho dúvidas se tal "inconveniência" não foi intencional. Vai ao Parlamento esclarecer? Aguardo, para entender o que está em causa.

23 de outubro de 2007 às 19:12  
Blogger Carlos Medina Ribeiro said...

Sendo pouco provável que o PGR seja dado a dizer disparates, o mais certo é haver "alguma coisa
na manga", que escapa ao cidadão-comum.
Assim, a estranha entrevista pode ter sido, sem que o percebamos, um "recado para alguém".

Esperemos para ver...

23 de outubro de 2007 às 19:16  
Blogger R. da Cunha said...

É. Começo a inclinar-me para aí. Aguardemos, então.

23 de outubro de 2007 às 19:19  
Blogger FR said...

Pois sim aguardemos.
Mas o facto é continuamos sem resultados quer do "Casa Pia" quer do estado da nossa justiça.
Fugitivos a monte, sentenças por executar, multas por cobrar ...

24 de outubro de 2007 às 11:38  

Enviar um comentário

<< Home