SENSIBILIDADE E BOM SENSO
Por Nuno Brederode Santos
O HOMEM QUE DESCEU AO CONGRESSO para tomar posse do partido dependia tão só da sua própria vontade. Diz-se que também da ambição. Mas ambicionar - por muito que os yuppies se indignem - é orgulhar-se do seu próprio futuro. Imaginário, presumido, é claro. É uma mística inoponível aos outros (ainda que o ambicioso intratável seja aquele que nos quer obrigar a termos orgulho no futuro dele). Admito, porém, que a ambição seja um esteróide da inteligência e que esta é primordial a iluminar a vontade.
Menezes hesitara na arrancada para a liderança. Mas, quando se decidiu, o tempo - dele e nosso - transfigurou-se. De pasto viscoso e ruminante, volveu vertigem, frenesim. Foram duas semanas com novos heróis e vilões, envolvidos na praça pública em processualidades sombrias e insídias burocráticas. Foram dias de canhão e noites de navalha. Mas, com a eleição, tudo acabou. A paixão do poder dava lugar à premeditação do seu exercício. Que é exactamente para onde vale a pena olhar.
Menezes podia rejuvenescer e inovar. Era a base de sustentação de uma ruptura, sem os ónus de a declarar. Mas os fantasmas de estar só entre notáveis e de o julgarem sem genealogia no partido, levaram-no às escolhas mais revivalistas. Podia ter-se cingido a Ângelo Correia e pouco mais. Ninguém ousaria contestá-lo. Mas preferiu uma política de exumação sistemática nas valas comuns do partido. Recebendo, com ela, as piores contradições e os mais esquecidos contenciosos. Convidada para a presidência do Congresso, Ferreira Leite apontou à ironia mas largou sarcasmo: não aceitava porque levara a sério a renovação.
Podia ter calado os agravos incómodos: Cavaco, Barroso e os barões de ambos. Mas preferiu afrontá-los nos agradecimentos, com o arreganho de um cavalheiro que se bateu à pistola por princípios.
Podia ter posto ordem nas indisciplinas pessoais do costume. Mas Santana Lopes queria um penhor de reconhecimento público, que era a unção na corrida à bancada parlamentar. Isto é, à voz mais audível de que um partido na oposição dispõe. E ele, a contragosto, deu-lha. Ficando a asseverar lealdades em murmúrios públicos que mais parecem rezas. Alberto João Jardim facturou-lhe a reviravolta. "A autonomia da Madeira será o que os madeirenses quiserem." E o Tribunal Constitucional deve ser um sótão escuro do Supremo Tribunal de Justiça. Para que melhor o entendam, não está em causa rever a Constituição: o PSD tornou-se o primeiro partido a reclamar uma nova. Perdidas as condições para a fazer pelas mãos de constituintes, Jardim acha que mais vale desvalorizar a actual pondo interposta bancada em guerrilha institucional permanente. Claro que aí Menezes sabe que tem de neutralizar um Presidente que jurou a Constituição (que inclui os próprios limites materiais da sua revisão). E acena pateticamente a Cavaco com uma estranha enxertia de novos poderes presidenciais, ao arrepio dos tempos em que se apelava por um parlamentarismo a cem por cento.
Podia ter moderado o discurso basista. Mas, depois da pública e dolorosa negociação com Santana, já saltou um cacique transmontano a ameaçar demissão, caso Duarte Lima ouse pensar ser cabeça de lista por Bragança.
Podia ter guardado tanta contenção para a recuperação dos laços que Marques Mendes cortou. Mas escolheu a luz do dia. Valentim Loureiro já respondeu, altaneiro: quem errou que se redima. Para evitar desculpas públicas, Ribau Esteves disse o possível: "tomo a devida nota."
Detenha-se a enumeração dos exemplos. Menezes cedeu a quem lhe disputa o poder e foi inflexível na subjectividade dos agravos. É uma receita legítima, mas que, sendo tão amoral quanto a contrária, revela uma doença antiga, que é a confusão entre "panache" e poder. Num apanhado de frases do dia, um articulista, que eu devia identificar mas não recordo, sentenciou: "falta-lhe o killer instinct." Não podia estar mais de acordo, mesmo que deteste tal instinto.
Menezes tem dois anos para convencer o eleitorado das magias que a sua vontade pode operar. Mas, concedo, aguardemos. Se há entradas de leão e saídas de sendeiro, então temos de admitir que talvez a vida permita o contrário.
«DN» de 21 de Outubro de 2007
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