6.8.11

Com ele ou sem ele

Por Antunes Ferreira

A CARUMA amortecia-lhe os passos, amaciando o caminho na beira do pinhal. Roberto caminhava a direito, as pernas curtas sustentando-lhe o tronco mal formado no cimo do qual se alapava a cabeça desproporcionada com o corpo. Os braços curtos terminavam abruptamente em mãos pequenas e papudas.

Tinha a consciência de que era um anão, desde miúdo que sofria pela sua condição, a malta na escola gozava com ele, chamava-lhe minorca, matraquilho, dava-lhe pontapés e cachações, usavam-no com plinto baixinho para saltar ao eixo, ribaldeixo, uma pedra do rio é um seixo. Nunca dizia não deixo, fosse para quem fosse, para ele era uma rima maldita.

Feliciano era o seu verdadeiro nome. Raio de trocadilho, logo ele que era um infeliz, havia de ter um assim. E quando, pela primeira vez, chegara à sua rua um homem de bigode a tira-linhas, com um pano e quatro varas e um malote de porão que era transportado num carrinho puxado por um catraio dos seus doze anos, de boina, e armara uma barraca quadrangular para representar uma peça de robertos, logo a maralha o alcunhou assim.

O puto corria os espectadores, boina na mão, recolhendo as moedas dos que as podiam dar. E deitara-lhe uma olhadela esquiva mas ácida, repetindo entre dentes o apodo; Feliciano, daí em diante Roberto, qual fantoche sem cordéis, ressumara palavrões, imaginara corrê-lo a pedradas, bem como aos galdérios que participavam na arruaça. Mas, o seu tamanho reduzido era impróprio para tais atitudes de vingança e, por isso, amaldiçoava-se a si próprio pela impotência. Seria cobardia?

Os anos foram-se acumulando e enquanto os da sua geração cresciam ele ficava-se no rés-do-chão, quiçá na cave, sentia-se metido em cova, enterrado vivo, desgraçado. O Jacinto da mercearia, quando ele, já nos vinte anos, lhe pedira emprego, respondera-lhe que não podia ser nada, tu nem chegas ao balcão, os clientes não te viam e piravam-se com as batatas da barrica à porta, ou quem sabe, com um bacalhau inteiro, pendurado de um gancho.

Mas dera-lhe o cesto de marçano, para levar as compras a casa das pessoas que o não queriam ou não podiam fazê-lo. Sempre lhe davam uns tostões que lhe acresciam a esmola de salário. Só que era uma labuta cansativa, o cabaz cheio era pesadíssimo, as pernitas bamboleantes arqueavam-se-lhe e se tropeçava era uma carga de trabalhos e descontos na féria.

O patrão merceeiro não era para graças, tu já me deste cabo de duas garrafas de azeite, de mais de duas dúzias de ovos, de um tacho de azeitonas com os teus tremeliques burros, até um garrafão de petróleo para fogareiro. Bandido, anão dum cabrão, pagas-mas todas, não te perdoo a falta de atenção e dos cuidados necessários. Roberto engolia, o Fernandes da farmácia também o recusara, a Rita da peixaria idem, idem, aspas, aspas. E continuava penosamente a subir os andares de prédios sem elevador, na mira das gorjetas magras.

Até que chegara o Circo Pinote; o Senhor Santos, o dono, a quem deitara uma vez mais o anzol, achara-o bom para a pista, os putos podiam atirar-lhe com saquinhos de serradura, que eram propositadamente vendidos para uns tiros ao boneco, ou seja ao Roberto. Mas não podia ser logo ali na praça em que o espectáculo era anunciado em alta berraria, tinha de ir ter com ele no local de armar a tenda, um largo plantado em frente do pinhal que ficava à saída da cidade.

Roberto aceitara, entregara as últimas compras, não roubara nada a não ser um pacote de quilo de açúcar (era muito guloso) para a Dona Lurdes do terceiro direito, que se lixe, vou-me pôr na alheta, puta que pariu o sacana do Jacinto. Corria Agosto de 1949, abafado e quente.

Pela primeira vez na vida, paria uma esperança, assobiava até, já via os músculos retesados dos homens que içavam o mastro central do pavilhão de lona encerada, imaginava-se na pista, de fardeta amarela, juntamente com os palhaços, uma alegria esfuziante. Atravessou o espaço sem caruma e quase correu para a carripana do Senhor Santos.

Alípio treinava no atirar das adagas; ao lado a menina Ermelinda, alvo vivo já um tanto para o gasto, seguia a trajectória da faca. Tinha confiança nele e era sua amante. Roberto entusiasmado, nem viu o punhal que se afundou na sua garganta, ai que desgraça, ai que desgraça, correu o lançador, correu a partenaire, ajoelharam-se junto ao gnomo em estertores, um esguicho enorme de sangue, a terra a empapar-se. Um último esticão e foi-se. A quarentona benzeu-se e correu-lhe as pálpebras. Uma zebra relinchou lá o fundo.

À noite houve espectáculo. Sem se dar pela falta de Roberto. Que, afinal, nunca tinha entrado, nem era conhecido. E o pacote de açúcar foi utilizado para fazer algodão doce.

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1 Comments:

Blogger Bartolomeu said...

Saborosa história, que retrata a exclusão a que, tanto antigamente como nos dias de hoje, muitas pessoas são votadas.
Contudo, evoca e faz renascer o velho estígma do cumprimento do destino, colocando o personagem Feliciano (talvez hironicamente assim baptizado, contrariando a pouca felicidade que o destino lhe reservara) a "entregar a carta a Garcia". Neste caso, o pacote de açúcar surrupiado à dona Lurdes do terceiro direito, (segunda vara, quarto juízo :))) que estava a fazer falta no circo, para um belo algodão-doce.
Diz o povo na sua imensa sabedoria «guardado se encontra o bocado, para quem o ha-de comer»
E já que se dissertou acerca da carta para Cuba e de Feliciano, aqui fica um outro Feliciano a desbulhar a sua guitarra ;)
http://www.youtube.com/watch?v=0TENBIrwOHU

8 de agosto de 2011 às 09:14  

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