Os Distúrbios Ingleses
Por Maria Filomena Mónica
PODIA LÁ resistir: se há coisa de que gosto é de uma polémica. Devido à tradição nacional do respeitinho, aliada ao corporativismo da sociedade portuguesa, as ocasiões são raras, especialmente na academia, que considera a crítica a colegas como um crime de lesa-majestade. Com o seu artigo sobre os distúrbios ingleses do último dia 14, Boaventura de Sousa Santos – sempre ele! – ofereceu-me uma oportunidade doirada.
Salto por cima do lirismo infantil, da ideologia revolucionária e do jargão sociológico, que caracterizam a sua prosa, para me concentrar nas causas que aponta para o que aconteceu nalgumas cidades inglesas. Na sua opinião, são quatro: «a promoção conjunta da desigualdade social e do individualismo, a mercantilização da vida individual e colectiva, a pratica do racismo em nome da tolerância (sic), o sequestro da democracia por elites privilegiadas e a consequente transformação da política em administração do roubo 'legal' dos cidadãos e do mal-estar que ele provoca».
O nível de abstracção do argumento leva-me a imaginar o autor, sentado num salão VIP's de um dos países do Terceiro Mundo para onde gosta de viajar, tentando escrever frases eternas. É por não conhecer a realidade dos bairros incendiados que nos presenteia com frases como esta: «Entre o poder neo-liberal instalado e os amotinados urbanos há uma simetria assustadora». Para ele, os criminosos não são os jovens que roubaram e agrediram Asyraf Haziq, o jovem malaio de 20 anos, caído a sangrar na rua onde se deslocara a fim de comprar o jantar, mas «os desordeiros que estão no poder», ou seja, o Executivo inglês.
Não nego que, na Grã Bretanha, há desemprego juvenil, o que explicará grande parte da revolta. Depois de terem deixado a escola, os miúdos pobres andam pelas ruas sem saber o que fazer. Mas isto não explica tudo: alguns dos amotinados tinham emprego. E, no entanto, pareciam sobretudo interessados em pilhar, em desafiar a polícia e em destruir. Curioso ainda é o facto de não termos ouvido reivindicações políticas, nem visto ataques a símbolos do poder. No fundo, os distúrbios tiveram menos a ver com raça ou com a classe social do que com a mistura explosiva de testerona juvenil, de ausência de perspectivas e do sentimento de impunidade. Sei que do facto de a violência não ter sido dirigida a um alvo preciso não posso concluir que não tenha significado. Tem-no, mas não serão os cientistas sociais de Coimbra que o descobrirão.
De repente, lembrei-me do que as cenas vistas na televisão me traziam à memória: não, não eram os motins de Brixton dos anos 1980, mas a vagabundagem de Alex, o personagem central de A Laranja Mecânica, de A. Burgess, uma obra adaptada ao cinema por S. Kubrick. Está lá tudo, a falta de convicção política, o recurso à violência como divertimento e até o vestuário usado como símbolo de pertença: o chapéu de coco preto de Malcom McDowell foi agora substituído pela camisola com barrete, o chamado hoodie.
PODIA LÁ resistir: se há coisa de que gosto é de uma polémica. Devido à tradição nacional do respeitinho, aliada ao corporativismo da sociedade portuguesa, as ocasiões são raras, especialmente na academia, que considera a crítica a colegas como um crime de lesa-majestade. Com o seu artigo sobre os distúrbios ingleses do último dia 14, Boaventura de Sousa Santos – sempre ele! – ofereceu-me uma oportunidade doirada.
Salto por cima do lirismo infantil, da ideologia revolucionária e do jargão sociológico, que caracterizam a sua prosa, para me concentrar nas causas que aponta para o que aconteceu nalgumas cidades inglesas. Na sua opinião, são quatro: «a promoção conjunta da desigualdade social e do individualismo, a mercantilização da vida individual e colectiva, a pratica do racismo em nome da tolerância (sic), o sequestro da democracia por elites privilegiadas e a consequente transformação da política em administração do roubo 'legal' dos cidadãos e do mal-estar que ele provoca».
O nível de abstracção do argumento leva-me a imaginar o autor, sentado num salão VIP's de um dos países do Terceiro Mundo para onde gosta de viajar, tentando escrever frases eternas. É por não conhecer a realidade dos bairros incendiados que nos presenteia com frases como esta: «Entre o poder neo-liberal instalado e os amotinados urbanos há uma simetria assustadora». Para ele, os criminosos não são os jovens que roubaram e agrediram Asyraf Haziq, o jovem malaio de 20 anos, caído a sangrar na rua onde se deslocara a fim de comprar o jantar, mas «os desordeiros que estão no poder», ou seja, o Executivo inglês.
Não nego que, na Grã Bretanha, há desemprego juvenil, o que explicará grande parte da revolta. Depois de terem deixado a escola, os miúdos pobres andam pelas ruas sem saber o que fazer. Mas isto não explica tudo: alguns dos amotinados tinham emprego. E, no entanto, pareciam sobretudo interessados em pilhar, em desafiar a polícia e em destruir. Curioso ainda é o facto de não termos ouvido reivindicações políticas, nem visto ataques a símbolos do poder. No fundo, os distúrbios tiveram menos a ver com raça ou com a classe social do que com a mistura explosiva de testerona juvenil, de ausência de perspectivas e do sentimento de impunidade. Sei que do facto de a violência não ter sido dirigida a um alvo preciso não posso concluir que não tenha significado. Tem-no, mas não serão os cientistas sociais de Coimbra que o descobrirão.
De repente, lembrei-me do que as cenas vistas na televisão me traziam à memória: não, não eram os motins de Brixton dos anos 1980, mas a vagabundagem de Alex, o personagem central de A Laranja Mecânica, de A. Burgess, uma obra adaptada ao cinema por S. Kubrick. Está lá tudo, a falta de convicção política, o recurso à violência como divertimento e até o vestuário usado como símbolo de pertença: o chapéu de coco preto de Malcom McDowell foi agora substituído pela camisola com barrete, o chamado hoodie.
«Expresso» de 20 Ago 11
Etiquetas: FM
3 Comments:
Cara Prof Maria Filomens Mónica,
Vi o filme. Também senti essas imagens que evocaram esses personagens quando vi os distúrbios em Londres.
Também a terapia aplicada foi um desastre. Qual a terapia a usar nestes acontecimentos? Mais behaviorismo (E-R)? Terapia de grupo? Reclusão, privação, socialização, minesotas?
Claro, não há receitas...
Meus Caros Amigos,
Permitam-me que discorde por grosso da comparação de MFM.
Aqui não havia nenhum Alex e dificilmente alguém daquela população indignada se interessaria pelo magnífico Ludovico, antes moendo as suas ociosas meninges com os vibrantes acordes dos Raps, dos Hip-Hops, mais ou menos Hards, mais ou menos electrónicos e repetitivos até ao êxtase do ensurdecimento total, certamente também mental, como naturalmente se compreenderá.
Talvez agora os académicos de Cambridge e de Oxford se dêem ao trabalho de analisar as virtudes da importação maciça de mão-de-obra barata e sem direitos, depois acantonada em territórios esconsos, vulgo bairros sociais, rapidamente interditados à circulação dos incautos anfitriões, apesar da imaginada nova cidadania entretanto adquirida, mas não racionalmente integrada, nem muito menos reflectida no comportamento social desses indignados cidadãos.
A Grã-Bretanha, outrora paradigma em várias coisas, nomeadamente em organização social, em formação escolar, em civismo e educação, com modelos sociais exportados para todo o mundo, entrou há décadas em franco declínio civilizacional, depois de tanto se ter empenhado na macaqueação das doutrinas do ultra-liberalismo económico-financeiro, de origem norte-americana, em grande parte responsável da presente desagregação ética e social, agora impossível de iludir.
Se os actuais mandantes britânicos não arrepiarem caminho, podem vir a terminar de pistola à cinta, como no velho Far West americano, cada um tratando de si e dos seus, com Fé em Deus e na sua bemamada Libra, em boa hora posta a recato da vil contaminação do Euro continental, essa nova maquinação urdida de Roma católica, para subjugar a soberba Albion, muito ciosa da sua Religião, livre da obediência Papal, antes confiadamente entregue à protecção das cabeças coroadas de suas Majestades Britânicas.
Avanti, presto.
Maria Filomena Mónica:
Não li o artigo de Boaventura Sousa Santos, porque, há muito tempo, deixei de ser capaz de ler o que ele escreve...
Admito até que a culpa seja toda minha, tenho de admitir...
Mas olhe, escreva ele o que escrever, se tivermos em conta aqueles versos em que se fala em "espetar navalhas nas rachas das meninas", ou coisa parecida..., já podemos ver progressos...
Nos que se fizeram professores de Coimbra, como em quaisquer outros...
Uns leões!
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