10.8.11

Que Linda Constituição

Por Maria Filomena Mónica

COMO ESTOU em semi-férias, decidi ler a Constituição, exercício a que, certamente por falta de tempo, nunca me tinha entregue. Sabia que, com as suas 32.000 palavras, era a mais longa da nossa História e uma das mais longas do mundo, mas nunca pensei que fosse tão extensa. Está lá tudo, do direito à paz à forma como elegemos os deputados. Não admira que ninguém, excepto os juristas, a conheça.

O facto de ser labiríntica tem um efeito: é possível invocá-la, a torto e a direito. Há uns meses, quando um polícia tentou multar-me por eu não ter comigo a folha A4 correspondente ao seguro do carro – apenas colocara no vidro dianteiro o quadradinho verde – respondi-lhe que, caso insistisse, o punha em tribunal, pois o seu gesto era «anti-constitucional». O pobre homem ficou tão estupefacto que me deixou prosseguir. É claro que era bluff, mas demonstra quão fácil é reclamarmo-nos de uma qualquer inconstitucionalidade.

Não são tanto as omissões que me preocupam, mas o que nela está contido. Veja-se o que o seu artº 155 estipula a respeito de eleições: «Os deputados são eleitos segundo o sistema de representação proporcional e o método da média mais alta de Hondt». A mais recente revisão, de 2005, alterou um aspecto. No seu artº 149, declara: «Os deputados são eleitos por círculos eleitorais geograficamente definidos na lei, a qual pode determinar a existência de círculos plurinominais e uninominais, bem como a respectiva natureza e complementaridade, por forma a assegurar o sistema de representação proporcional e o método da média mais alta de Hondt na conversão dos votos em número de mandatos». O legislador abriu uma frecha no bunker, mas, na prática, tudo se manteve, ou seja, não é possível realizarem-se eleições através de pequenos círculos uninominais, a única forma de aproximar os eleitos dos eleitores.

Como se não bastasse aos partidos terem a faculdade de cozinhar as listas periodicamente apresentadas ao eleitorado, a Constituição acrescenta que, para alguém se candidatar ao Parlamento, tem de estar inscrito ou de pedir boleia a um partido (artº 151). Não tenciono, juro, enveredar por uma carreira política, mas se desejasse candidatar-me por Tomar, terra dos meus avós, e se os habitantes desta cidade em mim confiassem, não o poderia fazer. Apesar de ter uma dimensão razoável, aquela cidade não elege o «seu» deputado, uma vez que está integrada na lista de candidatos do círculo distrital de Santarém. Tão pouco me posso candidatar pela Lapa, bairro onde vivo, ao qual se poderia agregar algumas freguesias das redondezas de forma a constituir um círculo de dimensão razoável, porque a Constituição a tal não me autoriza.

Em 1976, os Constituintes não confiaram no povo; têm agora na abstenção o castigo. Infelizmente, em vez de lutar por uma mudança da lei eleitoral – a qual exige uma alteração constitucional - o povo optou por desprezar os políticos, todos os políticos. É assim que os regimes acabam.
«Expresso» de 6 Ago 11

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1 Comments:

Blogger José Batista said...

Não sei, Maria Filomena Mónica, se entre nós, o regime (dito) democrático chegou (verdadeiramente) a começar. Ou se, tendo começado, começou (continuou, continua e há-de acabar) mal. Também não sei se poderia ter sido melhor. Nem sei se pode melhorar.
Por nossa (minha também) causa. Intrínseca.
Se ao menos houvesse alguém de fora que quisesse tomar conta disto...

Mas, olhe, agradeço-lhe a ideia da inconstitucionalidade oportunamente invocada...
Sendo certo que só deve funcionar com senhoras bonitas e com ar distinto. O que é um azar para muitíssima gente.

10 de agosto de 2011 às 19:41  

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