8.11.11

Ficção

Por João Paulo Guerra

O CENÁRIO parece o de um filme de terror, pós-cataclismo e caótico, um preto e branco sujo com mais sombras que luzes: numa cidade semi-deserta, de onde fogem a pé os derradeiros resistentes do longo dia de trabalho, privados também dos últimos transportes regulares, sombras de novos sem-abrigo confrontam-se com as ratazanas em redor do lixo acumulado.

A cidade, que ganhou novos habitantes nas zonas sombrias da miséria e da marginalidade sem-abrigo, perdeu a remoção diária dos lixos por inspiradas razões contabilísticas. Lixos calculadamente pobres, mas lixos que se deterioram a céu aberto nas ruas por onde germina agora a podridão. Caiu a cal que disfarçava o sujo dos muros, não há verba para uma nova demão, e falta Sophia para compor a ode dos novos tempos de indignidade e dos novos porquês. E a cidade, outrora um faustoso ponto de partida para novas contagens do espaço e do tempo na História, agora tem outros desígnios definidos por um ocupante sem rosto: produzir tantos pobres quantos os necessários para que a miséria do subconsumo privado contrabalance a dissipação dos recursos públicos na elevada missão de tapar os buracos da delinquência financeira e da usura.

Termina a projecção, luzes à sala. Não era uma cena de ficção: era a edição 2015 do DocLisboa, certame agora confinado à projecção clandestina de um único documentário, realizado com meios rudimentares e financiado por organizações humanitárias, não-governamentais, de solidariedade, de países emergentes, sobre Portugal e Lisboa em crise. Em plena crise, porque a crise não só continua como se agravou. E agravou tanto que os ocupantes se preparam para renovar por mais 20 anos o entendimento de ocupação com os ocupados responsáveis.
«DE» de 8 Nov 11

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