27.12.11

C. Hitchens em Lisboa

Por Maria Filomena Mónica

NÃO DEVE haver muitos trotsquistas que tenham deixado de o ser na sequência do PREC, mas foi isso que aconteceu a Christopher Hitchens. Quando em 1974 aterrou no aeroporto da Portela foi recebido por um capitão do MFA que o levou para o Hotel Tivoli: «Pela primeira vez na minha vida estava na lista das pessoas desejadas». Não foi difícil deixar-se conquistar pelo ambiente de libertação sexual que flutuava no ar e pela visão de soldados em uniforme desfilando ao lado de estudantes e de operários: «A meus olhos, tratava-se de uma repetição quase literal das cenas do Couraçado Potemkin ou da invasão do Palácio de Inverno». Tinha 25 anos, o que não o impedia de manter as ilusões de quem, em adolescente, se envolvera nas revoltas estudantis.

A certa altura, encontrou-se com Mário Soares, um homem que, segundo conta nas suas memórias, «normalmente seria por mim considerado um Social-Democrata insípido e dúbio». Tendo-o ouvido falar, em tom romântico, dos militares portugueses, o líder do PS chamou-o à pedra: «Mas se os oficiais estão de tal forma ligados ao povo, porque não envergam a indumentária civil?». A frase acabaria por ficar no caderno de notas que o escritor levou para Inglaterra. Hitchens compreendera «que a democracia e o pluralismo eram coisas boas em si, quer dizer, eram fins e não um meio para se atingir outro fim».

Depois, muita coisa se passaria na sua vida. Mas dela e da sua obra outros falarão. Limito-me a mencionar a forma como o vi – ou antes como o não vi - e como ele me influenciou. Em Fevereiro de 2010, a convite da Casa Fernando Pessoa, então dirigida por Inês Pedrosa, Hitchens regressou a Lisboa. Em 2007, após a publicação de God Is Not Great, um livro menor se comparado com os seus artigos e ensaios, tornara-se no ateu mais célebre do universo. Quando me preparava para o ir ouvir, tropecei nos andaimes erguidos no meu prédio, tendo rachado o nariz, um acontecimento que não gostaria de atribuir a uma intervenção transcendente. No dia seguinte, lia nos jornais ter ele afirmado que o português que mais admirava não era Pessoa, mas Eça. Ia morrendo de desgosto quando soube que tinha partido para Évora e, logo a seguir, para os EUA.

Num gesto pouco condicente com o meu temperamento, decidi enviar-lhe a minha biografia de Eça (em versão inglesa), para o que pedi a sua morada. Autorizada a fazê-lo, a Inês Pedrosa mandou-ma, tendo acrescentado que ele lhe comunicara ir lê-la com todo o gosto. Poucos dias passados, era-lhe diagnosticado o cancro no esófago que, na passada semana, poria fim à sua vida.

Se tivesse de escolher entre as milhares de páginas que escreveu, seleccionaria a pag. 36 do seu livro Letter To A Young Contrarian (2001), onde declara que, por pior que seja a sociedade em que vivemos, devemos agir de forma decente. A posição a adoptar, diz-nos, é a do «como se». É por isso que me comporto como se Portugal fosse um Estado de Direito, uma democracia representativa e um país culto.
«Expresso» de 23 Dez 11

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4 Comments:

Blogger Laura Cachupa Ferreira said...

É por isso que lhe leio as croniquetas, "como se" não fossem de uma tonta.

27 de dezembro de 2011 às 11:21  
Blogger José Batista said...

Maria Filomena Mónica:

Desculpe-me tratá-la assim. Respeito-a de tal modo que, se lhe pusesse qualquer coisa como "Professora Doutora" atrás do nome, sentiria que estava a desconsiderá-la. Por uma razão fundamental: quem procede com decência torna decente o seu nome, o que dispensa, por supérfluos, senão mesmo inconvenientes, quaisquer títulos. Ainda por cima com a subserviente tradição que existe no nosso país, a qual, por ridícula, tende, aos meus olhos, a embaciar os nomes. Isto tudo para lhe dizer que fiquei deliciado quando li a sua biografia de Eça de Queiroz. E para lhe dizer, e lhe pedir, já agora, que, não obstante haver quem venha por sistema insultá-la, gostaria de poder continuar a ler aqui os seus textos, que muito aprecio.
Como diz o povo, quem desdenha quer comprar. Mas compra quem pode. Sendo que no caso de pessoas, só algumas se vendem, ou deixam vender. Outras há que se deixam dominar por ódios mesquinhos que alimentam continuamente, sabe-se lá por que motivos.
Bem sei que não precisava que eu escrevesse isto. Mas não me sentiria uma pessoa decente, que vem aqui porque gosta de frequentar um sítio decente, para ler textos decentes. E por isso escrevi o que escrevi.
Tão só.
E veio-me à memória uma frase que li algures: "patifes são os(as) que patifes parecem, mais uma grande parte dos que só levemente causam essa impressão".
Ora, quando a causam fortemente, fácil é o diagnóstico.
Bem haja.

27 de dezembro de 2011 às 18:33  
Blogger Maria Filomena Mónica said...

Para José Batista,

A não ser no caso dos meus alunos, não gosto que me tratem por Professora, Doutora ou Srdrª. Só povos atrasados e analfabetos é que têm – ou fingem ter – reverência pelos letrados. Prefiro que me tratem por Maria - como em Inglaterra – por Maria Filomena ou por Filomena, como em Portugal. Não sou hipócrita: claro que me orgulho de ter um D. Phil (como em Oxford e Cambridge são designados os doutoramentos) por a esse grau tanto ter sacrificado e para ele tanto ter trabalhado. Não se admirará certamente que uma meritocrata como eu goste de ver o mérito reconhecido por uma Universidade internacionalmente famosa, mas não me dá qualquer prazer, bem pelo contrário, observar as formas de tratamento reverenciais que se tornaram hábito no meu país. Ainda bem que as não usa.

27 de dezembro de 2011 às 19:54  
Blogger Fátima Empadinha said...

Veneranda Professora Doutora (simplesmente) Maria (D. Phil por Oxford ou Cambridge), trolaró...

Alardeando falsas modéstias, sempre a mesma cagança...
Enjoa.

28 de dezembro de 2011 às 16:11  

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