Há 130 anos era assim...
Por Ramalho Ortigão
VEJA-SE
como em cada legislatura se propõe e se discute uma das poucas
questões graves de que o parlamento ainda se ocupa. Referimo-nos à coisa
a que, no calão oficial em que tem degenerado a língua pátria, se
chama — a questão da fazenda.
Reunidas as câmaras e aberto perante elas o orçamento do Estado,
começa-se invariavelmente por constatar, num trémulo elegíaco de
sinfonia fúnebre, que continua a existir o déficit. Cada um dos três
governos a quem a coroa alternadamente
adjudica a mamadeira do sistema encarrega-se de explicar aos
taquígrafos essa ocorrência — aliás desagradável, cumpre dizê-lo — mas
de que ele, governo em exercício, não tem a culpa. A
responsabilidade cabe ao governo transacto, bem conhecido pelos seus
esbanjamentos e pela sua incúria.
Para cada um desses três governos sucessivamente encarregados de
trazerem o déficit ao regaço da representação nacional, o governo que
imediatamente o precedeu nesse mesmo encargo é o último dos imbecis.
Tal é o conceito formidável em que cada um dos referidos três governos tem os outros dois!
A coroa pela sua parte — e é este o mais augusto do todos os seus
privilégios — é sucessivamente da opinião de todos os três ministérios;
e depois de haver retirado, com sincero nojo, a sua confiança aos
imbecis do grupo n.º 1, n.º 2 e n.º 3, a coroa torna a restituir a
citada confiança, com uma efusão de júbilo tão sincero como o nojo
anterior, a cada um dos grupos de imbecis já referidos mas colocados
cronologicamente em sentido inverso daquele em que estavam, ou sejam,
por sua ordem, os imbecis n.º 3, n.º 2 e n.º 1.
Trocadas as descomposturas preliminares sobre a questão da fazenda, decide-se que é indispensável, ainda mais uma vez,
recorrer ao crédito, e faz-se um novo empréstimo. No ano seguinte
averigua-se por cálculos cheios de engenho aritmético que para pagar os
encargos do empréstimo do ano anterior não há outro remédio senão
recorrer ainda mais uma vez ao país, e cria-se um novo imposto.
Fazem-se empréstimos para suprir o imposto, criam-se impostos para
pagar os juros dos empréstimos, tornam-se a fazer empréstimos para
atalhar os desvios do imposto para o pagamento dos juros, e neste
interessante círculo vicioso, mas ingénuo, o déficit — por uma estranha
birra, admissível num ser teimoso, mas inexplicável num mero saldo
negativo, em uma não existência, — aumenta sempre através das
contribuições intermitentes com que se destinam a extingui-lo já o
empréstimo contraído, já o imposto cobrado.
Assim como os alforges dos antigos pobres das feiras e das extintas
ordens mendicantes, o déficit tem dois sacos, um para diante outro
para trás, ambos destinados a receber o vácuo. Num dos sacos mete-se
a dívida flutuante, no outro mete-se a dívida consolidada. De
quando em quando há um relâmpago de júbilo, porque parece por um
momento que o alforge do déficit está vazio, isto é, que está sem
vácuo dentro: é a dívida, que se achava em estado de flutuação no
saco da frente, que passou no estado de consolidação para o saco de
trás.
A alegria fugaz mas intensa que provém da ilusão desta gigajoga
vale o dinheiro que custa, mas custa sempre alguma coisa, porque de
todas as vezes que eles mexem na dívida, seja para o que for, mesmo
para a mudar de saco, ela cresce.
Pela parte que lhe respeita o país espera. O quê? O momento em que
pela boa razão de não haver mais coisa que se colecte, porque estará
colectado tudo, deixe de haver quem empreste por não haver mais
quem pague.
No entanto o problema de aumentar a riqueza — único meio de prover
aos encargos — é considerado como absolutamente estranho à questão da fazenda.
E todavia nem toda a gente ignora que a riqueza não aumenta senão
pelo desenvolvimento progressivo do trabalho e que este se acha
ligado aos progressos da indústria. (...)
«As Farpas» (Vol. 6) - Junho de 1882
Etiquetas: autor convidado (a título póstumo...), Ramalho Ortigão
2 Comments:
Ora muito bem-vindo, senhor Ramalhudo Ramalhão Ortigão
Se agora não há quem tenha tal engenho de dizer diga-o senhor, ou repita-o, que está deveras atualizado.
Assim houvesse quem fosse digno de o ouvir e tentasse compreendê-lo.
Mas, nosso bom amigo de há tantos anos, isso não há-de ser coisa que o surpreenda...
Abraços para Si e para o também atualíssimo Eça.
Anteriormente, no segundo parágrafo:
"diga-o o senhor" e não "diga-o senhor".
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