3.4.13

Um senhor português

Por Baptista-Bastos
HÁ JÁ um bom par d'anos, em Santiago de Compostela, por um entardecer embatente de calor, um grupo de escritores portugueses falava do sentido da vida e do absurdo da sua insuficiência. Éramos, aqueles, Óscar Lopes, José Saramago, Maria Velho da Costa, eu, Francisco Belard, João de Melo. À memória não me vêm outros, mas talvez fossem mais na roda da esplanada, e as sombras dos edifícios formavam no cenário um recorte fantomático. Com o patrocínio da Gulbenkian viajáramos, à cidade medieval, um grupo expressivo falar das nossas experiências, e escutar o que os escritores galegos tinham para nos dizer. Foi uma jornada inesquecível, pela variedade de pessoas, pelas diferentes estéticas e pela grandeza do enunciado. Recordo-me do êxito estrepitoso de A Barraca, e de Maria do Céu Guerra, cujo génio, ao interpretar Gil Vicente, encheu de espanto e admiração o teatro apinhado.
Mas nesse fim de tarde, nessa esplanada longínqua discreteávamos acerca da natureza da vida e dos mistérios da morte. Foi quando Óscar Lopes, no jeito modesto e tímido, sua característica, disse: "O grande simbolista belga Maurice Maeterlinck escreveu que 'Os vivos são tão estúpidos quando falam dos mortos!'" Quedou-se em silêncio, mas a natureza da conversa era facilmente aplicável ao conceito. Uns defendiam a vida para lá do túmulo, outros não, outros ainda indecisos. A sabedoria tola de quem nada sabe para além do horizonte visível. E Óscar Lopes ensinava-nos, com simplicidade extrema, que devíamos duvidar de tudo, inclusive das nossas certezas mais enraizadas.
Este homem extraordinário, este português incomum, bondoso, sábio, generoso e decente, um dos maiores intelectuais europeus, que se foi embora há dias, com 95 anos, passou a vida a estudar, a interpelar, a interrogar-se e a pôr em causa todo o conhecimento adquirido, numa inquietação que o conduzia a outras inquietações e a novos dilemas. Marxista, comunista, membro do Comité Central do PCP, nunca entendeu a imposição dos dogmas, e a cedência do espírito às injunções do momento. A essência do seu percurso não tem igual. O meu amigo Vasco Graça Moura, num poema belíssimo, "Um Senhor de Matosinhos", traçou-lhe o retrato, por dentro e por fora. É um dos mais formidáveis textos de admiração da literatura portuguesa.
Há dias, no DN, Francisco Mangas recordava uma carta (1978) de Óscar Lopes ao seu companheiro António José Saraiva: "Estou farto de sofrer dores de cabeça e este mal difuso. No entanto, acredito que a vida tem um sentido. Acredito, de raiz, nisso. Nesse aspecto sou religioso e fui-o sempre."
Perguntar aos livros, aos temas sagrados e à matemática, aos teólogos e aos materialistas, perguntar à vida o que a vida tentava ocultar. Decifrar os sinais mais escassos e duvidar, duvidar sempre, até da própria dúvida. Deixou-nos esse legado.
«DN» de 3 Abr 13

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