O Governo Quântico
Por Carlos Fiolhais
EM 1935 o físico austríaco Erwin
Schroedinger exibiu as dificuldades conceptuais da teoria quântica, então
recente, criando um paradoxo que ficou conhecido por “gato de Schroedinger”. De
que dificuldades se trata? Nessa teoria, que governa o comportamento do mundo
microscópico, um estado de um sistema pode ser uma sobreposição ou mistura de
dois estados possíveis, mas opostos. Contudo, quando se efectua uma observação,
encontra-se, não o estado de mistura, mas sim um ou outro dos estados opostos.
Só podemos a priori conhecer
probabilidades de obter um estado ou outro. No exemplo de Schroedinger, o gato
está fechado dentro de uma caixa e um dispositivo quântico pode matá-lo. Antes
de abrirmos a caixa, o gato está numa sobreposição de vivo e morto. Mas, quando
a abrimos, verificamos que o gato está vivo ou morto e não as duas coisas ao
mesmo tempo. Schroedinger interrogou-se sobre esse mistério quântico: como pode
um gato estar vivo e morto ao mesmo tempo?
O actual governo de Portugal é quântico,
quer dizer, parece-se com o gato de Schroedinger. Se não observarmos está entre
o vivo e o morto. Assim uma espécie de zombie.
Quando o observamos está, por vezes, vivo e, noutras vezes, morto. Numas
ocasiões está a seguir fielmente o que diz a troika - o governo está vivo – e noutras ocasiões protesta contra
os “senhores da troika” – e está
morto. Olhamos para Vítor Gaspar, ministro de Estado e das Finanças – e o
governo está vivo; mas olhamos para Paulo Portas, ministro de Estado e dos
Negócios Estrangeiros – e o governo está morto. Portas esclareceu que uma
coligação não é uma fusão. Pois não: é uma confusão.
Esta característica quântica do governo
levanta uma questão semelhante à de Schroedinger em relação ao seu gato: como
pode um governo estar vivo e morto ao mesmo tempo? Se aceitarmos a ideia de sobreposição
de contrários, estará mais vivo do que morto ou mais morto do que vivo? Nos
últimos tempos, está, sem dúvida, mais morto do que vivo. Luís Marques Guedes, ministro
da Presidência e dos Assuntos Parlamentares, referiu-se por um lapso que é
revelador, ao seu colega Paulo Portas como “líder
do principal partido da oposição”. O governo tem a oposição dentro de si,
enquanto a oposição cá fora, apesar de ruidosa, é inofensiva.
Lili Caneças afirmou um dia, numa frase
que ficou célebre, que “estar vivo é o
contrário de estar morto”. Ora isto é sabedoria clássica, ultrapassada pela
sabedoria quântica. Não foram os portugueses que descobriram a teoria quântica,
mas existem, na nossa língua, expressões quânticas como estar “mais morto do que vivo”, o que, de
facto, significa, estar mais vivo do que morto, embora por pouco, isto é, às
portas da morte. Também dizemos “mais
para lá do que para cá” para descrever o mesmo tipo de situação. Temos,
portanto, um lado quântico em nós que vai além do nosso lado Lili Caneças.
Mesmo o fado cantado por Amália Rodrigues, “É
ou não é”, que, a avaliar pelo título parece clássico, pois não há justaposição
de opostos, é afinal quântico a avaliar pelo final do refrão, que contém uma
reviravolta surpreendente: “Digam lá se é assim ou não é?/
Ai, não, não é! / Digam lá se é assim ou não é?/ Ai, não, não é! Pois é!”
Pois é. A
lógica quântica não é fácil de perceber. Como é que um governo pode diminuir as
pensões aos reformados da função pública e, ao mesmo tempo, garantir o
pagamento integral das mesmas pensões? O porta-voz do “maior partido da
oposição”, João Almeida, tentou explicar a confusão. Mas tudo ficou ainda mais
confuso: ele tem a "profunda
convicção de que a medida nunca será aplicada", pois "o cenário de ela ser aplicada seria
contrariar uma decisão do Conselho de Ministros". Acontece que a extraordinária
medida de aumentar a austeridade dos depauperados pensionistas foi mesmo
aprovada em Conselho de Ministros (extraordinário) e enviada à troika para garantir o pagamento da
próxima tranche do empréstimo. Mas
mais: sabemos, por Vítor Gaspar, que o referido
corte será aplicado em caso de “absoluta
necessidade”, coisa que não nos tem faltado. Por um lado, há a “absoluta convicção” do porta-voz e, por
outro, a ”absoluta necessidade” do
ministro. Vamos ver se ganha a convicção ou a necessidade. Aceitam-se apostas.
O que falta
hoje ao governo? Obviamente um rumo claro. Mais austeridade ou crescimento económico?
Mais miséria ou sensibilidade social? O primeiro-ministro Pedro Passos Coelho,
que tem estado do lado de Vítor Gaspar, não pôs na ordem Paulo Portas quando
este, com evidente quebra do dever de lealdade, se demarcou publicamente de um
documento aprovado em Conselho de Ministros. Passos Coelho perdeu uma boa
oportunidade de afirmar a sua autoridade face à oposição interna. E um governo
sem liderança só pode andar ao acaso, não podendo nós adivinhar para onde vai.
«Público» de 15 Mai 13 Etiquetas: autor convidado, CF
2 Comments:
Já tinha lido em papel. Só o título é um tratado! Depois, chamar à colação a Lili Caneças e Amália, em contextos diversos, ´outro tratado.
E pena no fim borrar um pouco a pintura. A partir do momento em que acaba a capacidade de pagar dívida, a austeridade é inevitável, qualquer que seja o desenlace ou mandantes.
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