A frase afrontosa do dr. Montenegro
Por Baptista-Bastos
O
DR. LUÍS Montenegro, chefe do grupo parlamentar do PSD, afirmou,
anteontem, sem pudor e sem rubor, que os portugueses estão melhor da
vida do que há dois anos. Sentia por ele uma prudente simpatia.
Independentemente de representar o papel pouco nobre, mas por ele
aceito, de dizer améns às patifarias do Governo, parecia-me, até,
contrafeito. Mas a obediência partidária obriga, quem quer ser obrigado,
a aquiescências ocasionalmente indignas.
O dr. Montenegro, sem
ser uma decepção política, desiludiu-me moralmente. A frase, afrontosa,
afrontou-o. Sorridente, sem maior segredo do que um paisano endomingado,
formal e elementar, estava no Parlamento e nas televisões sem agressão
nem contundência. Um serafim entre a astúcia, o pecado e a malandrice.
Ele acredita, realmente, naquilo que disse, ou tratou-se de um recoveiro
a dar um recado? Desconhece que há mais de um milhão de desempregados?,
número com tendência para aumentar, quarenta e dois por cento dos quais
são jovens; que há quase quatrocentas mil famílias apelantes ao Banco
Alimentar, à Caritas e a outras instituições de socorro social, porque
sem possibilidades de sobrevivência?; que a emigração atinge níveis
assustadores, quase como nos anos de 60 do século passado?; e que o
número de suicídios equivale à dimensão do nosso desespero; desconhece
ou pretende ignorar?
Há algo de infame nas declarações dos
apoiantes deste Executivo. A destruição dos laços sociais, como relação
de cultura e acto civilizacional, cruelmente praticada, de há dois anos a
esta parte, como capítulo de um projecto ideológico diabólico, pode ser
desconhecida por cegueira ou por indiferença? E os crimes cometidos
(porque de crimes se trata) ficarão alguma vez impunes ou desembocarão
em cumplicidades sórdidas?
O dr. Montenegro não quer saber das
vaias recebidas pelos ministros ou secretário de Estado, das gargalhadas
vexatórias que envolvem esses que tais, quando pretendem discursar em
assembleias e reuniões? Tem percepção da insolente gravidade do que
disse para os portugueses que sofrem um infortúnio atroz, e mesmo da
grosseira inconsistência da mentira formulada?
O significado das
palavras trabalho, história, decência, honra, ética, progresso,
felicidade, solidariedade nada diz a esta gente que trepou ao poder
desafecta da experiência do lugar e do valor da função comum. Quando
Passos Coelho afirma que avançará com este propósito suicidário, mesmo
sem consensos, a referência possui similitude com a enormidade das
declarações do dr. Montenegro: são farinha do mesmo saco, a suscitar a
mesma repugnância e a animar o nosso desprezo.
As enumerações
feitas levam-nos a pensar que estes serventuários apenas actuam sob os
ventos do mais forte, neste caso a especulação financeira, e atropelam a
política, amolgando ao mesmo tempo a democracia.
Por decisão pessoal, o autor do texto não escreve segundo o novo Acordo Ortográfico«DN» de 5 Jun 13
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