10.8.13

À espera de quê…?

Por Antunes Ferreira
ESTÁ sentada à esquina da vida esperando, quem sabe?, a morte. Juliana tem quase 94 anos, claudica pendurada de um bordão a fingir de bengala, na boca ressequida sobram-lhe nove dentes enquistados em gengivas desmaiadas, de cor indefinida a desfazer-se em branco.
Um banco de cozinha, em madeira, serve-lhe de âncora no meio do calcetado do passeio e um gato de telhado esconso faz-lhe companhia. É um felino tão negro como vestido dela, de amores nocturnos diversos em telhados avulsos e chama-se Bolinhas. Vadio de profissão, acompanhante da velha de militante, adora peixe, mesmo com espinhas e pardais, por isso lhe chamam o céu dos pássaros, que é a barriga dele.
Juliana tem dois filhos, uma filha e quatro netos todos machos. Que não lhe ligam nenhuma. Em tempos – ela lembra-se das partidas dos três, mas não se recorda em ano isso aconteceu – foram-se para a cidade, amanharam-se e nem novas nem mandadas. Disse-lhe a vizinha Sara (será que foi a Sara? Ou terá sido a Deolinda?,  que estão bem, encontrara a Julinha, com dois filhos, ela e eles aperaltados, a entrar para um carrão, num bairro fino da tal urbe.
Com uma cana brava – mas será que há canas mansas? - desenha figuras estranhas no chão de terra nem sequer batida. Se ela própria não entende as linhas caprichosas que rascunha, alguém que passe como as compreenderá? Lá longe ouvem-se os sinos da igreja (são três nunca se perceberá porque três…) a chamar os fiéis ou os sovinas que batem no peito e suam orações e penitências, em busca falsa do perdão que não merecem. Mas fingem merecer.
Todos os dias, sem falhas, o rogo do bronze ressoa e espalha-se pela freguesia. Juliana espera ser chamada para comungar dos ritos – que serão os ritos? – aspirar os sândalos e lavar-se na pia da água benta. Mais uma questão se lhe levanta, ela nem sabe porquê. Que é preciso fazer para ganhar a vida eterna? E outra: haverá essa tal vida eterna?
Ou será tudo uma efabulação, mais uma palavra que não descobre nos caminhos da vida que vem percorrendo, sabe-se lá desde quando e por onde. Certo, certo é o seu cajado, amigo nas horas más, encosto seguro e garantido, de resto o único em que pode confiar. No resto são apenas águas passadas que em tempo moeram o trigo nas azenhas, mas agora não.
Os percalços e os arremedos de cada dia, mais do que o pão e o pai nosso, são-lhe cada vez mais familiares, como se isso pudesse ser. E a verdade é que são, tal como os arreganhos e as negaças. A muleta dá-lhe a pouca confiança que vai tendo, misturada com a paciência que também a acompanha, a todas horas, a todos os momentos, sempre.
Sempre, de resto, é coisa que lhe vai rareando, a passagem do tempo, medido no relógio da torra da igreja dá-lhe a sensação de estar sentada sem saber levantar-se – ou não poder – porque se foram amontoando as dores e sulcando as rugas que nem repara porque não tem espelho, só possui a esquina, o encosto e o banco de pau em que assenta os ossos também eles encarquilhados.
Não faz mal, acostumou-se aos pontapés dos outros, às punhadas de mais não sabe quem, ao sopro balofo de caraça de embusteiro, ao riso pintado a branco de palhaço. É então que pensa: o circo vai continuar, com os que se equilibram no arame falhado, com os domadores de ideias, com os ilusionistas do cartaz anunciador. É assim a vida? Será mesmo ela? Ou a vida é mais do que isso, do gesticular dos truões, do tilintar dos talheres numa mesa farta?
Ontem, foram-na encontrar feita numa rodilha, de olhos esbugalhados, o xaile negro descambado, um susto, meninas, vizinhas de umbral de porta, um grande susto, disse a Deolinda no velório. Família nem vê-la. Padre só para a encomendar (para onde?)
No caixão, morta, ela está à espera da vida. Qual? Só há uma.

Etiquetas: