2.9.13

Circo ao Sol

Por Rui Tavares
SE UM GÉNIO do mal quisesse encontrar a melhor forma de minar o regime político português, dificilmente teria inventado melhor do que o processo em redor das eleições autárquicas de 2013. Mas em vez de um génio do mal, quem criou o problema e não o quis resolver foi o próprio regime. Porquê?
Esta história começou, indubitavelmente, com a boa intenção de renovar o poder local democrático. Salto por cima de saber se a lei de “limitação de mandatos” pretendia mesmo extinguir os dinossauros autárquicos ou apenas promover a migração de dinossauros da freguesia de Alguidares de Cima para a freguesia de Alguidares de Baixo. A Assembleia da República teve a oportunidade de clarificar o âmbito da lei e, unanimemente, decidiu não o fazer. O resultado é que, a cerca de um mês das eleições autárquicas, há uma balbúrdia generalizada nas eleições das grandes cidades, um deixa andar generalizado nas eleições das freguesias, decisões contraditórias dos tribunais e uma batata quente a caminho do Tribunal Constitucional. A situação já não pode ser bem resolvida, dê por onde der. Só esperemos que não piore.
Era mesmo disto que Portugal precisava. Em cima da pior crise económica e social temos agora uma eleição descredibilizada, jogada nos tribunais, cheia de desonestidades, rebaixando-nos para o estilo das velhas chapeladas eleitorais do século XIX. Onde a cultura democrática é mais fraca do que a cultura de poder não há legislação nem constituição que resista.
Se isto era tão fácil de prever, e de resolver, por que razão chegámos até aqui? Diz-se que a culpa é da incompetência dos políticos, mas eu não consigo comprar essa explicação: os nossos políticos sabem ser imaginativos, eficazes e expeditos — quando lhes interessa. A outra explicação é precisamente essa: há interesse na degradação.
Uma explicação bem mais terrível, eu sei. Para começar, é preciso entender que em Portugal, hoje, os partidos se limitam a explorar o seu nicho de mercado, como pequenas empresas especializadas na gestão da frustração eleitoral do votante no vizinho do lado. Como tal, para todos os partidos há um ganho marginal na descredibilização do sistema. Por isso foi mais vantajoso prepararem-se para umas eleições nestas condições (escolhendo o seu lado na controvérsia, adaptando argumentários, pagando a advogados e companhias de comunicação, etc.) do que fazer o mais fácil, que era tomar uma decisão para credibilizar as eleições.
Além da vantagem para os partidos, há também uma vantagem indireta para os políticos manhosos. Como tudo isto envergonha “a classe política”, como eles dizem, praticamente ninguém tem hoje coragem de ser político. Assim sendo, a qualidade que há na sociedade raramente se transfere para a política, e aí está a vantagem: menos concorrência. (Uma vez perguntei a uma pessoa com larga experiência partidária porque não se faziam primárias abertas, entre militantes e simpatizantes, para escolha de candidatos eleitorais. A resposta foi: “estás maluco? ainda aparecia algum bom candidato!”).
Juntando estas peças, podemos já ter passado o ponto de não retorno: quanto mais degradação, menos participação política, e vice-versa. A partir daí, perder uma democracia é muito fácil: basta não fazer nada.
(Público de 26 de Agosto de 2013)

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1 Comments:

Blogger Agostinho said...

Como se distingue um político de hoje de um do séc XIX?
"Na albarda.Mais chapéu menos chapéu, mais bengala menos bengala o conteúdo é igual". É o que pensa a maioria dos portugueses que, mesmo sabendo que é atraiçoado (síndrome do c.), condescende quando confrontado com gravatas e fatos de bom corte.
O problema dos deputados não é a competência, é a intenção. A lei em apreço é prova indesmentível da maior virtude dos "nossos" mui dignos representantes: a manha.

3 de setembro de 2013 às 00:52  

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