Circo ao Sol
Por Rui Tavares
SE UM GÉNIO do mal quisesse encontrar a
melhor forma de minar o regime político português, dificilmente teria
inventado melhor do que o processo em redor das eleições autárquicas de
2013. Mas em vez de um génio do mal, quem criou o problema e não o quis
resolver foi o próprio regime. Porquê?
Esta história começou, indubitavelmente, com a boa intenção de
renovar o poder local democrático. Salto por cima de saber se a lei de
“limitação de mandatos” pretendia mesmo extinguir os dinossauros
autárquicos ou apenas promover a migração de dinossauros da freguesia de
Alguidares de Cima para a freguesia de Alguidares de Baixo. A
Assembleia da República teve a oportunidade de clarificar o âmbito da
lei e, unanimemente, decidiu não o fazer. O resultado é que, a cerca de
um mês das eleições autárquicas, há uma balbúrdia generalizada nas
eleições das grandes cidades, um deixa andar generalizado nas eleições
das freguesias, decisões contraditórias dos tribunais e uma batata
quente a caminho do Tribunal Constitucional. A situação já não pode ser
bem resolvida, dê por onde der. Só esperemos que não piore.
Era mesmo disto que Portugal precisava. Em cima da pior crise
económica e social temos agora uma eleição descredibilizada, jogada nos
tribunais, cheia de desonestidades, rebaixando-nos para o estilo das
velhas chapeladas eleitorais do século XIX. Onde a cultura democrática é
mais fraca do que a cultura de poder não há legislação nem constituição
que resista.
Se isto era tão fácil de prever, e de resolver, por que razão
chegámos até aqui? Diz-se que a culpa é da incompetência dos políticos,
mas eu não consigo comprar essa explicação: os nossos políticos sabem
ser imaginativos, eficazes e expeditos — quando lhes interessa. A outra
explicação é precisamente essa: há interesse na degradação.
Uma explicação bem mais terrível, eu sei. Para começar, é preciso
entender que em Portugal, hoje, os partidos se limitam a explorar o seu
nicho de mercado, como pequenas empresas especializadas na gestão da
frustração eleitoral do votante no vizinho do lado. Como tal, para todos
os partidos há um ganho marginal na descredibilização do sistema. Por
isso foi mais vantajoso prepararem-se para umas eleições nestas
condições (escolhendo o seu lado na controvérsia, adaptando
argumentários, pagando a advogados e companhias de comunicação, etc.) do
que fazer o mais fácil, que era tomar uma decisão para credibilizar as
eleições.
Além da vantagem para os partidos, há também uma vantagem indireta
para os políticos manhosos. Como tudo isto envergonha “a classe
política”, como eles dizem, praticamente ninguém tem hoje coragem de ser
político. Assim sendo, a qualidade que há na sociedade raramente se
transfere para a política, e aí está a vantagem: menos concorrência.
(Uma vez perguntei a uma pessoa com larga experiência partidária porque
não se faziam primárias abertas, entre militantes e simpatizantes, para
escolha de candidatos eleitorais. A resposta foi: “estás maluco? ainda
aparecia algum bom candidato!”).
Juntando estas peças, podemos já ter passado o ponto de não retorno:
quanto mais degradação, menos participação política, e vice-versa. A
partir daí, perder uma democracia é muito fácil: basta não fazer nada.
(Público de 26 de Agosto de 2013)Etiquetas: autor convidado, RT
1 Comments:
Como se distingue um político de hoje de um do séc XIX?
"Na albarda.Mais chapéu menos chapéu, mais bengala menos bengala o conteúdo é igual". É o que pensa a maioria dos portugueses que, mesmo sabendo que é atraiçoado (síndrome do c.), condescende quando confrontado com gravatas e fatos de bom corte.
O problema dos deputados não é a competência, é a intenção. A lei em apreço é prova indesmentível da maior virtude dos "nossos" mui dignos representantes: a manha.
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