Uma Noite Silenciosa
Por Maria Filomena Mónica
A INTUIÇÃO vale muito, mas a Ciência
vale mais. Desde há anos que suspeitava sofrer de hiperastesia (sensibilidade
anormal ao barulho), mas não tinha provas. Agora, possuo-as. A fim de verificar
quando tinham lugar os arrasadores «picos» da minha tensão arterial sistólica,
o médico obrigou-me a estar ligada a uma máquina que a mede ao longo de 24
horas. Acabo de receber os resultados: está tudo bem até ao momento em que entro
num Centro Comercial.
Sempre me defendi do barulho: na
Universidade, depois de me ter refugiado num corredor húmido do antigo Convento
das Trinas (hoje ISEG), mandei colocar fibra de lã nas paredes do meu gabinete
da Rua Miguel Lupi, com o intuito de me defender das conversas dos colegas que
ocupavam os escritórios vizinhos. Só me sentia bem em bibliotecas, fosse ela a
Nacional, em Lisboa, ou a Bodleian, em Oxford. Quando os
meus filhos saíram de casa, optei por vir trabalhar para uma cave onde não
chega o rumor do mundo. Não desejo a paz do sepulcro, mas tão só a oportunidade
para me ouvir pensar. O silêncio é-me tão essencial quanto o oxigénio que
respiro.
Para quem pensa como eu, chegou
a pior época do ano. A estes, lembro que a arte é um antídoto espiritual ao
materialismo do Natal moderno. Foi por saber isto que ressuscitei as
reproduções que possuo de algumas telas de V. Hammershoi, um pintor dinamarquês
praticamente desconhecido em
Portugal. Vi a sua pintura, pela primeira vez, na Tate Modern.
Estava eu junto a uma sala de onde saíam ruídos de uma qualquer «obra-prima»
contemporânea, quando, na secção «Natureza Morta, Objectos e Vida Real», me
deparei com um quadro diferente. Em «Interior, Luz do Sol no Soalho» (1906), raios
do sol poente penetram por uma janela, ao lado de uma porta fechada. Apesar de
o pintor ser nórdico, nada há ali de gélido. Pelo contrário: a luz doce,
reflectindo-se no soalho, consola. É um daqueles momentos de harmonia que, uma
vez por outra, os deuses nos oferecem ao fim da tarde.
No passado mês de Outubro,
quando fui a Paris, voltei a encontrar um dos seus quadros no Museu d´Orsay. Em 0 Repouso (1905), vemos uma mulher de costas, sentada a uma mesa
onde, sobre uma toalha grossa, está uma taça branca. Lembrei-me de outro
quadro, presente numa exposição organizada, em 2008, pela Royal Academy de Londres, no qual a mesma mulher, ainda e sempre de
costas, está a tocar música (Interior com
uma Mulher num Piano, 1901). A figura é Ida, sua mulher e sua musa. Mas não
é ela que me atrai, mas a paz que à sua volta se respira.
As telas de Hammershoi constituem
o oposto do Natal moderno, rodeado de barulho, de objectos e de sentimentos
desencontrados. Apesar de, em menina, ir à Missa do Galo numa capelinha em S. Pedro de Alcântara, onde
ouvia o Adeste Fideles (supostamente composto pelo nosso rei D. João
IV), não permaneci uma adepta. A canção natalícia de que mais gosto é a
austríaca Stille Nacht. A todos, um
Natal silencioso, é o que desejo.
«Expresso» de 21 Dez 13Etiquetas: FM
3 Comments:
A idade não perdoa, o declínio do envelhecimento dá sentido à vida e põe tudo na sua correta perspetiva.
BOM NATAL
A propósito de Natal, música e ruído pergunto se há alguém que goste da pirosice da música "ambiente" a par de publicidade manhosa que inunda as ruas e lojas das cidades deste país? Quem autoriza esta agressão?
Santo Natal para si Filomena e família.
O silêncio e o recato são música também e espaços de Paz.
Gostei muito do seu texto.
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