19.2.14

O grau zero da ignomínia

Por Baptista-Bastos
Nas celebrações dos 500 anos das Misericórdias, as televisões filmaram o ministro Pedro Mota Soares, compungido e piedoso, a assistir à liturgia na igreja de Castelo Branco. Um momento de estremecida devoção. Nas orações que acompanhou, afeiçoado de dó e ungido de evidente santidade, o ministro Mota persignou-se, genuflectiu, beijou a mão, tomou a hóstia, certamente pedindo perdão ao Criador pelas malfeitorias infligidas ao mundo dos que trabalham ou que trabalharam. Nós.
O ministro Mota denuncia um rosto de santo de altar, atormentado e macerado, como convém à clemência exposta. O ministro Mota não é uma criatura de Deus: é um adjectivo. Diz-se militante do CDS, mas não propende para "democrata-cristão", tendo em conta a violência dos decretos que assina. Será, quando muito, um servente do ideário neoliberal, que tem desgraçado o País e destruído o que de melhor a pátria possui: a história e a juventude. Depois, pelo que se ouve e diz, vai às missas de domingo, acaso pedir as bênçãos do céu e a absolvição a Jesus.
Que têm a ver as práticas governativas do CDS com a compaixão subjacente ao catolicismo, de que aquele partido se diz estrénuo paladino? Este farisaísmo repartido entre os infames cometimentos de segunda a sexta-feira, e as práticas religiosas como salvação apaziguadora devolvem-nos a imagem de quem está no poder, e se diz católico. Haja Deus e haja Freud!
Talvez Freud seja a explicação mais recomendável para se entender esta corja de hipócritas que invadiu os territórios da decência e transformou o embuste em culto. Talvez. Deus, como precaução de celestes bonanças, serve de ocorrência momentânea, não como devoção e crença.
A repugnante cena de Mota na igreja fez-me recordar um poema de Guerra Junqueiro, recolhido em A Velhice do Padre Eterno, que cito de cor, pelo que me desculpo de qualquer incorrecção: "No meio de uma feira / uns poucos de palhaços / andavam a mostrar/ em cima de um jumento / um aborto infeliz/ sem mãos, sem pés, sem braços/ aborto que lhes dava um grande rendimento. / E o monstro arregalava / uns grandes olhos baços / e sem entendimento. / Ao ver esse quadro, apóstolos romanos/ funâmbulos da cruz/ eu lembrei-me de vós / hipócratas, devassos / que andais pelo universo/ há mil e tantos anos/ exibindo e explorando o corpo de Jesus."
Em Os Irmãos Karamazov, o mais velho deles afirma: "Se Deus não existe, tudo é permitido." Deus existe mesmo para esta súcia que tripudia na política e no espírito, no amor pelos outros, na consciência e na fé, com desenvolto desprezo?
Atingimos o grau zero da ignomínia. Socorro.
«DN» de 19 Fev 14

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