2.3.14

A um morto nada se recusa

Por Ferreira Fernandes 
Há que dizê-lo, as alternativas oferecidas em Portugal a quem se quer despedir do seu ente querido são escassas. Despedimo-nos de forma cinzenta e enterra-se sem outras palavras que as do padre (que baixa os olhos para reler o nome do defunto, não vá enganar-se), numa cerimónia anódina. Raramente um português se ergue e diz antes que seja irremediavelmente tarde: "Era eu garoto e o meu pai cantava-me ladainhas." E o pai baixa à terra sem ouvir o que gostaria. Outros, muitos africanos e os anglo-saxões, têm comes e bebes, música e muitas palavras. Mas nós é assim, os nossos costumes fúnebres são apagados ou, mais apropriadamente, mortos. A nossa tradição, exportamo-la até para o Brasil: há dias, li o romance do cronista brasileiro Carlos Heitor Cony Quase Memória, que mais não é que o discurso de despedida ao seu pai, que ele não fez na data devida. Ganhou-se um belo livro, perdeu-se uma bela despedida. Porque a questão é essa: se quase todos aceitamos os funerais sem alma, já há quem gostaria de outra coisa... Discursos? Bandas de jazz funeral à Nova Orleães? O que for. E eis que o mercado se pôs a funcionar! A agência funerária Funalcoitão ("Mais do que enterros, fazemos homenagens") começou por fazer um anúncio oferecendo outros partires. Com um burro, um acrobata e raios no céu como no poema de Mário Sá-Carneiro "Fim". A um morto nada se recusa. O anúncio do cangalheiro foi a coisa mais viva da semana.
«DN» de 2 Mar 14

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