23.7.14

A sinistra relação das coisas

Por Baptista-Bastos
As coisas parecem indicar que, no próximo dia 23, a CPLP (Comunidade dos Países de Língua Portuguesa), na cimeira de Timor, vai ter o seu requiem. Cabisbaixos e servis, os governos dos países que constituíam aquela vasta sociedade abandonaram os princípios, as normas e os valores morais dos fundadores e cederam aos grandes interesses dos negócios. As manobras de bastidores estavam, há anos, em movimento, e o que era uma ideia límpida e um conceito nítido de colaboração entre países de fala igual foi tripudiada friamente. A entrada da Guiné Equatorial, antiga colónia espanhola, cujos costumes, cultura, ideologia, política e comportamento são contrários, e até opostos, aos da comunidade, não é só absurda: possui as características de uma usurpação. Nem o facto de quem manda no país ser antidemocrático, ou ademocrático, como queiram, impediu o resto da comunidade de se opor ou sequer recalcitrar.
O capitalismo desconhece a história, as características, os padrões específicos das nações, nem isso está nos seus objectivos, mas tem de existir um contrapoder que permita a existência, simultânea, da soberania e do desenvolvimento económico, cultural e social. O que está em causa, com a inserção da Guiné Equatorial na CPLP é a imposição do axioma neoliberal, e dos abusos mais sintomáticos de uma violência sem paralelo nos nossos dias.
É lamentável que os países instituidores da comunidade não se tenham oposto a este enredo, que nada tem que ver com princípios de solidariedade e muito menos com relações de língua. De um modo mais simples, digamos que o capitalismo também neste caso sai vencedor, pela rendição, pela subserviência e pela nova categoria de negligência dos governos. Tem-se visto, um pouco por todo o mundo, a que conduz esta indiferença gelada, e às ameaças reais que pesam em todos. Parafraseando Sophia, nós sabemos, temos informações, assistimos ao caos, e não queremos assumir as responsabilidades de uma decisão.
Os tentáculos da ganância, a ausência de um ideal progressista que se lhe obste, continuam a desembocar em múltiplas incertezas. O espectro da guerra paira como endemia. A selvajaria dos conflitos locais só o é porque descuidamos da natureza do que oculta. O abatimento do avião da Malaysia Airlines não é, somente, uma ignomínia pavorosa: indica que o mundo actual não conhece limites, e está associado à assunção de um novo paradigma, que temos de combater com energia, porque a nossa sobrevivência ética está em questão. Como se lê n' Os Irmãos Karamazov, de Dostoievki, "se Deus não existe, tudo é permitido". Deus como acto moral, Deus como espessura e dignidade humanas. Não é abusivo estabelecer relações entre as coisas: todas elas estão ligadas e obedecem a leis muito próprias. 
«DN» de 23 Jul14

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