O tempo da morte
Por Antunes Ferreira
QUASE não acredito, mas aconteceu. Infelizmente. Em pouco
mais de uma semana morreram dos jornalistas: Miguel Gaspar que trabalhou comigo
no “Diário de Notícias” alguns anos e Rui Tovar, um homem que sabia “tudo”
sobre o futebol e que tinha um ficheiro elaborado e actualizado cuidadosamente
por ele próprio.
Miguel Gaspar entrou no quotidiano da Avenida da Liberdade
já eu era chefe da Redacção. Culto, inteligente, trabalhador, bem depressa se
destacou entre os camaradas. Estou a vê-lo sentado à sua secretária junto das
janelas que dão para a Rodrigues Sampaio, Foi no nosso DN que conheceu e casou
com a Leonor Figueiredo, uma jornalista de mão cheia.
Curiosamente quando nasceu o meu primeiro neto, o João, ao
lado da Margarida estava a Leonor. Ambas tiveram o parto no mesmo dia e ambos
se chamaram João. Foi uma coincidência que nunca mais nos largou e cimentou se
possível reforçando a nossa Amizade.
Ainda mal refeito do desaparecimento do Miguel, surge a
notícia da morte do Rui Tovar; com ele estabeleci um pacto quando fomos, mais
alguns camaradas, à Polónia ver Portugal ganhar em Varsóvia com o público a
gritar “só mais um, só mais um!” O intérprete que nos acompanhava, Adam
Mieskowsky, traduziu-me a gritaria e acrescentou que o pessoal também clamava
“que assim a Rússia não vai a Paris!” Era o Europeu que estava em jogo. Pois o Rui
cumpriu, como sempre fazia, o combinado: cedeu-me o seu lugar na fila dos
portugueses porque o “Diário de Notícias” tinha de ser escrito, impresso e etc.
e a RTP – de que era o enviado especial – desenrascava-se mais facilmente.
Vai para dois meses, depois de eu ter regressado de Goa
almocei com o Rui e fui com o Miguel (que já era director-adjunto do ”Público”)
para recordarmos tempos passados e cortar na casaca de gente que hoje faz comunicação.
Os erros gramaticais, as frases desconexas, o facilitismo e a mania das
grandezas o que significa o “estrelato”… Mal sabíamos os três o desenlace que
se verificaria tão rapidamente.
Não são tantos os anos em que nos conhecemos e em que
ficámos Amigos. Era um tempo em que os jornalistas ainda vestiam a camisola dos
órgãos onde trabalhavam. Era um tempo que, para além das naturais rivalidades,
ao fim de serviços comuns, mas
obviamente para as respectivas Redacções e depois de realizados os
textos, ia tomar-se um copo. Era um tempo em que a camaradagem sobrepunha-se às
ordens recebidas, mas só após se ter cumprido o trabalho. Era o tempo em que
não havia horários.
Custa-me escrever estas linhas. Possivelmente porque
envelheci e este tempo não tem nada que ver com o tempo que era o nosso tempo.
Possivelmente porque se foram dois jornalistas e dois Amigos. Possivelmente
porque antevejo que o próximo tempo será o tempo em eu próprio desaparecerei.
Não tenho medo da morte, tenho sim da vida. A linha que separa
uma da outra não é nenhuma. Não é uma tangente, é uma secante. Na geometria do
tempo, ainda há tempo para reflectirmos e pensarmos que a única coisa que é
insubstituível na vida é a morte. Mas também é o tempo das desilusões e das
raivas. Porque neste tempo não se cumpriram as esperanças que tivemos e
aconchegámos ao peito. Porque é o tempo em que as raivas se concentram naqueles
que no poleiro não servem o País, pelo contrário, servem-se dele. Porque e
finalmente é o tempo que em tão pouco tempo morreram dois jornalistas. E
Amigos.
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