Tão farto que estou de dadores de lições
Por Ferreira Fernandes
A penúltima vez que vi José Afonso foi numa esquina do Conde de Redondo. É fácil amá-lo, basta ouvi-lo, e eu descobri a beleza da sua música e da sua voz partida em tempos cinzentos (procurei a palavra certa, e é essa, cinzentos). No pouco que falámos ele passou uma tangente por uma qualquer doença que tinha e que veio à baila por eu me inquietar pelo seu ar quebrado. A última vez que o vi foi no Coliseu, o seu último concerto em Lisboa, quando os seus braços estavam caídos ao longo do corpo e já todos nós sabíamos ao que íamos. Depois fui ao funeral, em Setúbal, e abri o meu texto, no Diário Popular, com as gaivotas em terra que vi nessa tarde. José Afonso tinha ELA e até há pouco eu não guardara nem o nome dessa doença, esclerose lateral amiotrófica. A tal que fecha os homens num caixão gelado. A tal que ao ser comunicada é como receber um balde de água gelada, porque é terrível e não tem cura. Era assim em 1987, quando morreu José Afonso. E é hoje. Na pátria dos laboratórios farmacêuticos, os Estados Unidos, há 30 mil pessoas com ELA, uma ninharia, duas pessoas em 100 mil. No ano passado, a campanha pública pela ELA deu 2,1 milhões. Neste ano, porque alguém inventou o vídeo do balde de água fria pela cabeça, a campanha já vai em 41 milhões... Deitar um balde de gelo na cabeça é ridículo, é. Mas quem critica esse ridículo que faça melhor, em dinheiro, ou vá dar banho ao cão.
«DN» de 22 Ago 14Etiquetas: autor convidado, F.F
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