OITENTOSE
Por A. M. Galopim de Carvalho
Há dias o otorrinolaringologista que me
observou, depois de ouvir o meu historial clínico e de olhar para a lista de
fármacos que diariamente sou forçado a tomar, olhou para mim com um amistoso
sorriso e disse:
- A sua doença, professor, é só uma e
chama-se “oitentose”.
Rimos os dois enquanto ele prescreveu o que
entendeu prescrever. Despedimo-nos, ele ficou onde estava, à espera do próximo
cliente e eu voltei à minha rotina.
De facto, a “oitentose”, outros há que a
referem pela sigla PDI, afectou-me consideravelmente a audição, a visão, a
mobilidade e, em consequência disso, o convívio com os outros, com a sociedade
que me rodeia. Em contrapartida, aumentou-me a capacidade de interiorização. E
nesta interiorização, o natural envelhecimento do corpo conduz,
inevitavelmente, ao problema da morte, que, no meu caso pessoal, é sentido com
a maior tranquilidade, como um fim de uma etapa natural inscrita na natureza e
na evolução da matéria.
São muitos os que, para seu conforto, se
agarram à ideia de uma vida “do lado de lá” assegurada pelas respectivas almas.
Não é, seguramente, o meu caso.
A Bíblia ensina que a alma, entendida como
espírito, é uma emanação exclusiva do Homem a quem Deus deu vida no sexto dia
da Criação, o que, segundo o texto sagrado, aconteceu há cerca de seis mil
anos. Para os crentes, a alma nasce com o ser humano, cresce e evolui com ele,
liberta-se dele no momento da morte do respectivo corpo e permanece para além
dele.
Nesta
concepção, a morte física de
alguém tem lugar no momento em que a alma abandona o corpo e parte para uma
outra forma de existência, entendida como unicamente espiritual, imortal e,
portanto, eterna.
A palavra alma radica
no latim “anima” e significa o que
anima e dela derivam palavras do nosso dia-a-dia, como animal, animado, animação, ânimo e animismo, a teoria que considera a alma,
simultaneamente, princípio de vida psíquica e física ou orgânica. Nesta óptica,
abandonado pela alma, o corpo fica sem animação e, portanto, morto.
No âmbito da
grande maioria das religiões cristãs e não cristãs, a alma é uma entidade
imaterial que continua a existir após a morte do corpo, destinada a fruir, para
sempre, a graça celestial ou condenada ao eterno tormento. Os seguidores desta
ideia poderão concluir que, uma vez libertas do corpo e dos interesses e
compromissos inerentes à vida terrena, as almas se tornam as melhores críticas
dos actos dos homens ou das mulheres que foram.
Na linha da tradição religiosa pagã da antiga
Grécia, Platão ensinava que as almas, na sua imortalidade, caminhavam para a
perfeição, ganhando sabedoria e libertando-se dos medos e de outros defeitos
humanos, entre os quais, a inevitável condição de errar. E essa sabedoria era interpretada
por ele como a capacidade de conviver com os deuses por todo o sempre.
Para Lucrécio, poeta romano do século I a. C., a
alma morria com o corpo de que foi complemento. Ele defendia que, após a morte,
dela restava o que ele designou por “simulacrum”, entidade a que o povo
chama fantasma e que muitos acreditam deambular entre os vivos. Nesta sua visão
revela ter bebido na sabedoria grega, nomeadamente, na ideia epicurista de “eidolon”,
termo grego que refere o mesmo tipo de entidade.
A Igreja católica
ensina que há tantas almas, quantas a pessoas nascidas na Terra.
Um parêntesis para dizer a quem não sabe que
o termo católico tem origem na palavra grega katholikós, que significa Universal.
Há, portanto,
as almas das pessoas que estão vivas e as de todas as que já morreram, digamos
que desde Adão e Eva. Aceitando esta versão bíblica, o número de almas é imenso
e não pára de crescer. Assim sendo, podemos perguntar «onde é que cabem tantas
almas?»
A resposta
afigura-se-me simples. O conceito de alma implica o seu carácter imaterial.
Assim, as almas não têm dimensão física, ou seja, não têm massa nem volume, não
têm peso e não ocupam espaço. São como o pensamento. Para elas não há gravidade
nem distâncias, nem fronteiras, não há alto nem baixo, nem dia nem noite, nem
quente nem frio. São ubiquistas, podendo estar, ao mesmo tempo e a qualquer
momento, aqui e nos quasares mais longínquos, nos confins do Universo, a
milhares de milhões de anos-luz.
Sendo a alma
exclusiva do Homem e se tivermos em atenção a evolução do ser humano como
espécie, desde o mais antigo primata, até ao Homo sapiens actual, passando pelos australopitecos e pelos outros
hominídeos que os estudiosos têm descoberto e descrito, a pergunta que me
ocorre fazer é «a partir de que estádio evolutivo da hominização, os nossos
antepassados começaram a surgir acompanhados das respectivas almas?» Foi no Neanderthal, aparecido há umas centenas
de milhares de anos, ou foi só no Cro-Magnon,
que se pensa ter exterminado aqueles, há uns trinta ou quarenta mil anos?
A alma entendo-a
pura e simplesmente como o psiquismo decorrente da vida animal. Sem sombra de
dúvida, sabemos que os nossos antepassados exerceram actividade psíquica e,
neste sentido, torna-se evidente que tiveram alma tal como eu a entendo. Mais
ainda, muitos animais superiores revelam capacidades cerebrais amplamente
investigadas em institutos de psicologia animal, pelo que podemos dizer que
também têm alma, repito, no sentido que dou à palavra. Quem põe em causa a
inteligência de um chimpanzé, de um cão, de um golfinho ou, mesmo, do Troodon formosus, o dinossáurio
carnívoro, desaparecido há mais de sessenta milhões de anos?
Nesta
concepção, quando morre o corpo morre a alma. O que perdura, por mais ou menos
tempo, é a memória que dele, enquanto vivo, nos ficou.
Por vezes, dou por mim a pensar que sou um materialista,
no sentido filosófico da palavra, não no sentido vulgar e pejorativo de pessoa
só interessada nos bens materiais. Um materialista na linha de Leucipo de
Mileto e de Demócrito de Abdera, filósofos atomistas do século V, antes de
Cristo, e precursores do materialismo, para os quais tudo o que existia era
feito de átomos e vazio.
Até que algo me “ilumine”, como a tantos
outros, sou de opinião de que tudo o que existe é matéria e que todos os
fenómenos que observamos são o resultado de interacções materiais. O
pensamento, ou seja, a actividade intelectual, psíquica ou espiritual, como
alguns preferem dizer, cria as ideias, mas temos de concordar que essa
actividade é processada por circuitos eléctricos entre células do cérebro, que
sabemos serem entidades materiais feitas de carbono, oxigénio, hidrogénio,
azoto e umas pitadas de outros elementos químicos.
Não sendo matéria, as ideias concebo-as como
fruto de um estado muito avançado desta realidade física e biológica, que é o
cérebro. São parte do
intelecto (uns dirão do espírito) de quem as concebeu enquanto criatura viva e,
portanto, radicam em algo bem material. Morto o cérebro são muitas as ideias
que sobrevivem através das suas criações, por tempo menos ou mais dilatado.
Leucipo e Demócrito, para citar apenas dois, morreram há mais de dois milénios,
mas as suas ideias continuam bem vivas. As criações materiais, que podemos
tocar ou ver, uma escultura ou uma pintura, por exemplo, encerram ideias que
não morrem, a não ser que algo as destrua. Mas as criações imateriais morrem se
não tiverem quem as mantenha vivas e as transmita.
O pensamento filosófico ou o matemático só existem
se forem registados num qualquer suporte material ou se alguém, como criatura
viva, os recordar.
A música existe mas só nos damos conta dela se for
escrita, tocada, gravada ou cantada. Praticamente, perdeu-se toda a música que
se cantou ou tocou na Antiguidade e na Idade Média, anteriormente à introdução
dos pentagramas (pautas) e respectivas notações dos sons, no século XI. Mas
sabemos que se fez música porque alguns dos instrumentos usados, como a lira e
a cítara, chegaram até nós.
Com a poesia passa-se o mesmo. Se não for escrita
ou registada perde-se. Têm sido muitos os poetas populares, que não sabendo escrever
ou não tendo tido quem lhe escrevesse os versos que criaram, morrem, levando
consigo toda a poética de que foram autores. Felizmente que, por terem sido
escritas, chegaram até nós obras que classificamos de imorredouras e que
dizemos serem as almas dos respectivos poetas. E é por isso que se fala da
imortalidade de Píndaro, de Virgílio, Dante, Camões, O’Neill, Sofia, Ary…
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5 Comments:
Que belo texto!
V.Exª é bem melhor sem meter politiquês.
Um conselho: Talvez ainda vá a tempo de se inscrever na religião que garante 40 virgens.
Cumps,
Um texto lúcido e comovente...No entanto,para mim,a eterna dúvida ..,E,depois?
Mais uma LIÇÃO, caro Professor. Mas,como diz Ilha da lua: ...E depois?
"De facto, a “oitentose”, outros há que a referem pela sigla PDI," Há quem considere esta sigla politicamente incorrecta e então inventaram uma outra sigla "DNA" data de nascimento antiga.
Os meus respeitosos cumprimentos professor.
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