4.10.16

Sem emenda - Esquerda, direita e vice-versa

Por António Barreto
Está aberto um novo ciclo político. Como já houve noutros tempos, de má memória, antes e depois do 25 de Abril. São tempos de fanatismo. De exclusão. De afrontamento sem tréguas. São tempos de esquerda contra a direita, que geram tempos de direita contra a esquerda. Há quem goste. Há quem considere que essa é a grande política, o regresso da política e outras banalidades. Mas sabemos que não é verdade. Com o país assim dividido, perdem-se meios de acção e oportunidades de compromisso e de cooperação.

Há com certeza esquerda e direita. Em muitas coisas, são diversos e querem coisas diferentes. Mas há muito mais. O país e a política não se resumem a isso. Há a cultura, a nação, a religião, a etnia, a região, a idade, a arte, a ciência, o trabalho, o desporto, o amor, boa parte da economia, a educação, a saúde, o património e muito mais onde esquerda e direita não têm qualquer espécie de importância, podem até ser nefastos.

O que nestes tempos de fanatismo marca a diferença entre esquerda e direita é o autor. O que a direita faz é de direita. O que a esquerda faz, de esquerda é. A autoria marca o conteúdo, não o contrário. É o estilo dos déspotas. A mesma coisa, feita por alguém de esquerda ou de direita, é de esquerda ou de direita. Austeridade, poupança, frugalidade ou rigor: se os responsáveis forem de esquerda, é de esquerda. Se forem de direita, é de direita. Medidas da responsabilidade de partidos da direita são fogo para a esquerda, devem ser condenadas e consideradas roubo. Se postas em prática por gente de esquerda, são detestáveis para a direita e consideradas assalto.

Diminuição das garantias, redução das liberdades individuais, restrição de direitos, violação do segredo bancário e do sigilo de correspondência: estes gestos têm duas interpretações. Feitos pela esquerda, de esquerda são, festejados pelas esquerdas e repudiados pelas direitas. Feitos pelas direitas, de direita são, aplaudidos pelas direitas e vilipendiados pelas esquerdas. Gastos com a defesa, despesa com a segurança e equipamentos para as polícias: conforme o governo, assim estes orçamentos serão de esquerda ou de direita, apoiados pela tribo apoiante, condenados pela tribo oposta.

Negócios com capitalistas, entendimentos com multinacionais, favores a empreiteiros, incentivos a investidores, projectos de equipamento e parcerias: são empreendimentos de esquerda ou de direita, conforme os governos que as fazem, não conforme os méritos da obra.

Corrupção, crime e delinquência: é muito fácil, perante uma qualquer destas realidades, verificar que esquerdas e direitas se comportam de modo simétrico. Simpatizam, toleram ou condenam consoante o autor. As políticas e as medidas contra o terrorismo e a violência têm o mesmo destino: se vierem da esquerda, são de esquerda, aplaudidas pela esquerda e condenadas pela direita. Se vierem da direita, são de direita, festejadas pela direita e opostas pela esquerda.

Quase já não há matérias em que a esquerda e a direita democráticas sejam capazes de, sem trauma, estar de acordo. Quase já não há valores comuns. Com esta divisão exclusiva, toda a esquerda deixa de ser democrática para a direita e vice-versa. Nos debates parlamentares, já se fala de esquerda e de direita como se fossem pestes ou pragas sem salvação.

É natural que haja “paz social”, isto é, ausência de greves, enquanto os sindicatos de esquerda tenham acesso ao poder e os partidos de esquerda possam frequentar os corredores do governo. Também é natural que haja “clima optimista” para os negócios, enquanto os patrões tenham fácil contacto com os governantes e os partidos da direita sejam bem-vindos nas antecâmaras dos ministérios. Tudo isso é natural e faz parte do jogo político. Infelizmente.
DN, 2 de Outubro de 2016

Etiquetas:

2 Comments:

Blogger Ilha da lua said...

É com agrado,nos tempos que correm, ler artigos de opinião escritos, com rigor, lucidez e isenção como os Dr. António Barreto.
Na minha opinião,este texto encaixa na última foto publicada neste blog(28 de Setembro).A 42 anos de distância, é legítimo perguntar, a verdadeira razão pela qual a dita maioria não se podia manifestar. Pelo que é do conhecimento geral, seriam pessoas que não concordavam com o rumo da revolução(socialismo),nem com a apressada descolonização. Seriam todos de extrema direita?Ou todos de direita? Ou sensatos democratas? No entanto, penso que a direita nessa altura ficou com o complexo de se assumir como tal(herança da revolução),tornando-se o CDS(democrata-cristão)e o PSD(social-democrata) a cara da direita em Portugal.À esquerda, O PS (esquerda democrática) não pode, certamente, pertencer à outra esquerda (totalitária) a que pertencem o PCP e o BE. Vivemos, uma fase, em que as ideologias foram completamente desvirtuadas e em que começa a não haver espaço para um honesto democrata se situar. Não admira pois, que dentro em breve comece a formar-se outra "maioria". Sem espaço, e com a voz cada vez mais silenciada...

4 de outubro de 2016 às 14:35  
Blogger SLGS said...

Como sempre, o Dr. António Barreto, traz-nos uma visão lúcida, muito lúcida, do que infelizmente se passa nos bastidores da nossa política e nas mentes "orientadas" e fanatizadas de esquerdistas e direitistas. Não é de hoje, infelizmente, é de sempre, mas em Portugal agudizou-se pós 25 de Abril, por todos aqueles que o não souberam compreender e o utilizaram para proveito da sua opção, esquerda ou direita, esquecendo que era imperioso aproveitar a oportunidade para dar dignidade, cultural, económica e social a um povo até aí vilipendiado. Não fizeram melhor dos que os responsáveis dos 64 anos anteriores ( foi em 1910) que se pretendeu dar a mudança. Agravaram a situação, pois abriram as mentes a um povo impreparado e continuaram a deixá-lo na miséria, sem perspectivas, agora num plano de sofrimento muito maior por conscientes da sua situação. E tudo, porque se continua a teimar em Esquerda/Direita, no faz bem e mal, todos fazendo precisamente a mesma coisa. Os consensos são inviáveis, o povo que se lixe e fique cada vez mais atrasado.
Hitler foi o ser abominável que foi, mas foi-o mais porque era de direita. Estaline foi o ser abominável que foi, mas foi-o menos, passou mais despercebido, porque era de esquerda. Até há quem se arvore em Estalinista, com muito orgulho. AMBOS FORAM MONSTROS DO MAL, esta é que é a verdade.
Mas enfim, vamos vivendo e "sofrendo" assim, ao rufar das posições estremadas dos autores e actores políticos, que se preocupam unicamente com os seus próprios umbigos.
Obrigado Dr. Barreto pela sua coragem e lucidez, pôs o dedo na ferida, já o tinha feito quando assumiu responsabilidades políticas e tão incompreendido foi, com o fanatismo Esquerda/Direita.
Se não sairmos rapidamente disto, não vamos a lado nenhum.

5 de outubro de 2016 às 15:53  

Enviar um comentário

<< Home