21.11.16

Sem emenda - O mundo que criámos

Por António Barreto
O mundo que nós fizemos é fonte inesgotável de amor e decência. De honra e bondade. De beleza e inteligência. Mas também é verdade que a sociedade que criámos, com similares contributos de todas as correntes políticas, exibe abundantes razões de infelicidade e desespero.

Substituímos a liberdade e os direitos individuais pelos direitos colectivos e sociais. Destruímos o “ethos” do trabalho, em troca da obsessão da competitividade. Habituámo-nos à desigualdade social e ao desemprego crónico. Não denunciamos o racismo dos outros pelo risco de sermos nós apelidados de racistas. Aceitamos a vigilância dos indivíduos pelo Estado. Cultivamos a transparência, mas destruímos a privacidade. Deixamos que a vida cultural obedeça às regras da publicidade e da propaganda.

Fomos brandos perante ideias nefastas. A noção de que a identidade nacional é fantasia reaccionária. A certeza de que a igualdade é fonte de liberdade. A crença que o sistema democrático gera sempre a liberdade. A convicção de que basta querer para que um pobre e um desempregado deixem de o ser. A certeza contrária: se um pobre e um desempregado são o que são, é por culpa da sociedade.

Criámos uma sociedade de direitos sem mérito, de garantias sem esforço e de privilégios sem valor. Dissemos a todos que podiam aspirar a tudo, à gratuitidade, à assistência, à estabilidade vitalícia, a toda a educação, cultura e ciência e criámos classes médias prontas para tudo, desde que o consumo seja ilimitado e o crédito infinito. Fomentámos a substituição da família pela escola. Demos à política o direito de tudo dominar, a economia, a cultura, a ciência e a moral. 

Dissemos a muitos que podiam aspirar a tudo o que quisessem, que podiam ser imensamente ricos, que a imaginação, a força e o êxito eram os grandes critérios de triunfo, que a especulação era permitida e a ambição festejada! Fizemos ricos, bilionários e proprietários disformes capazes de tudo e convencidos de que podem enganar e esmagar quem contrarie tão ilustres seres. Desprezámos quem ganhou dinheiro, quem quis ganhar dinheiro e quem quis subir na vida. Não soubemos distinguir entre ganhar dinheiro de forma decente e honesta e acumular dinheiro de modo corrupto e desonesto.

Fizemos ou deixámos fazer um Estado monstruoso. Uma carga de impostos desmoralizadora. O despotismo do Estado democrático. A indiferença perante o endividamento. O favorecimento pelo Estado de negócios ilícitos, favoráveis aos amigos. A promiscuidade e a corrupção inevitáveis. A ideia de que o dinheiro não tem pátria, odor ou origem. A transformação do partido político em casta de sacerdotes da democracia. A tolerância perante a corrupção, a mentira e a promiscuidade.

A substituição de valores de identidade nacional por abstracções internacionais. A intolerância perante os diferentes, os outros e os que não pensam como nós. O mau convívio com as religiões. A ficção democrática da União Europeia e o embuste do défice democrático e dos falsos remédios para o curar. A dependência da Europa parasita dos Estados Unidos em tudo o que respeita à defesa.

Em nome da competitividade, deixámos destruir empregos estáveis e decentes e aproveitámos as piores condições de trabalho e de vida dos países pobres e das ditaduras. Queixamo-nos da globalização, que gostaríamos de travar, lamentando os desempregados europeus, sem preocupação pelas centenas de milhões de asiáticos que devem à globalização a sua sobrevivência e que deixaram de morrer de fome. 

Populistas, nacionalistas, reaccionários, comunistas e revolucionários: criámos os espectros que nos ameaçam. Ou deixámos criar.
DN, 20 de Novembro de 2016

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2 Comments:

Blogger SLGS said...

Que inveja tenho de não saber "dizer" assim, tudo, tão sinteticamente.
BRILHANTE!

21 de novembro de 2016 às 16:01  
Blogger Ilha da lua said...

É do conhecimento público o percurso político do Dr. António Barreto. Lutou contra a ditadura e ajudou a construir a democracia. Quero, pois cumprimenta-lo por este invulgar artigo de opinião. Não só porque demonstra uma análise realista e desassombrada da actualidade, como também demonstra o grande carácter do autor.

21 de novembro de 2016 às 22:16  

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