Sem emenda - Segredo de injustiça
Por António Barreto
Como foi possível chegar aqui, a esta polémica obscena a propósito dos fogos, em que quase todas as opiniões sobre os desastres, as causas, as soluções e as responsabilidades são dominadas pela simpatia partidária? O governo e apoiantes tudo fazem para esconder o falhanço, dissolver responsabilidades, acusar os serviços e denunciar a oposição. A oposição vitupera e acusa, faz demagogia, aproveita e aproveita-se. Toda a gente sofre em directo e chora para as notícias das oito. Fala-se em nome dos mortos, poucos referem os vivos.
Percebem-se os incêndios. Com o clima mediterrânico, as nossas matas, a desordem florestal, a insuficiência de bombeiros profissionais, a inércia dos governos fora da estação dos fogos, os criminosos mal castigados, as nomeações partidárias para os serviços de prevenção, a aquisição de um sistema de comunicações pelo ministro de então que é o Primeiro-ministro de hoje, as misteriosas compras de equipamento pesado, os estranhos contratos de aluguer de meios de combate, a corrupção imposta por alguns bancos e umas tantas empresas de serviços, com tudo isto, percebe-se que haja incêndios, que não haja prevenção adequada, que a luta contra os fogos acabe por ser descoordenada e ineficaz, que se coloquem em perigo de vida os bombeiros, os polícias, os enfermeiros e os guardas, para já não falar dos cidadãos, dos lavradores e dos velhotes.
Mas há algo que não se percebe. Como foi possível que um conjunto de instituições, prestigiadas umas, outras menos, considere que um desastre esteja em “segredo de Justiça” e que este se aplique a uma lista de mortos… Segredo de justiça? Para acidentes deste género? É simplesmente absurdo! Como é possível admitir que um governo invoque o segredo de justiça e se reclame da separação de poderes para não publicar a lista de mortos desde o primeiro minuto? Como foi possível chegar a esta hipocrisia canhestra que tenta esconder-se atrás de argumentos jurídicos que nada têm a ver com o assunto? Uma lista de mortos a enterrar é um segredo? De quem? Para quem? Os governos, as direcções gerais, as empresas de seguros, os bombeiros e os autarcas não têm obrigações perante os cidadãos? O que estava realmente em segredo? Os nomes? As circunstâncias? O sitio da morte? Ou as responsabilidades do governo?
Como é possível que se tenha estabelecido um black out informativo tentando impedir que autarcas, bombeiros, comandantes de guardas e polícias, responsáveis pela prevenção e pela saúde informem o público? E que se acuse de oportunismo e demagogia quem quer que faça perguntas sobre o que se passou? E que os partidos que apoiam o governo sejam incapazes de uma exigência de informação? Desde quando é demagógico fazer perguntas? Por que razão não se pode ou não se deve discutir o que realmente fez a diferença, isto é, a falha de previsão, a ausência de prontidão, a falta de coordenação e a carência de autoridade? Quem assim reage, como reagirá em todos os outros casos?
Como foi possível desnaturar de tal modo a democracia e os costumes para se chegar a este ponto? Como foi possível deixar que esta democracia se parecesse com a ditadura aquando das inundações de Lisboa e de outros desastres, para já não falar dos feridos e mortos da guerra do Ultramar com os quais o governo tentava também fazer selecção e tratamento? Como deixaram os deputados, os magistrados, os militares, os médicos, os autarcas e os comandantes dos bombeiros e das polícias que se chegasse a este ponto?
Que é feito dos homens livres do meu país? Estão assim tão dependentes da simpatia partidária, dos empregos públicos, das notícias administradas gota a gota, dos financiamentos, dos subsídios, das bolsas de estudo e das autorizações que preferem calar-se? Que é feito dos autarcas livres do meu país? Onde estarão eles no dia e na hora do desastre? Talvez à porta do partido quando as populações pedirem socorro e conforto.
DN, 30 de Julho de 2017
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4 Comments:
Muito corajoso este texto, nada que espante vindo de quem vem. O Sr. Doutor António Barreto, abordando os infelizes acontecimentos recentes e a descoordenação que puseram a descoberto, toca precisamente em todos os males que assolam esta nossa terra desde que a ambição, o oportunismo, a incompetência e a desonestidade tomou conta da política, (quase me custa a dizer dos políticos) que (des)governa este país. Sofremos e pagamos todos e não aparece quem ponha um freio a isto. Não me refiro, não quero, um ditador. Quero gente honesta, competente, que pense nas pessoas e na terra, que não alinhe em partidarites que reprovam quando oposição e fazem igual quando governam, mas que seja capaz de obter consensos que nos façam progredir. Estamos fartos de Esquerdas e Direitas, é tudo farinha do mesmo saco, só pensam em "glórias" pessoais e partidárias, comportando-se do mesmo modo quando a vez lhes chega. É tão mau sentir fugir a esperança...
«Como deixaram os deputados, os magistrados, os militares, os médicos, os autarcas e os comandantes dos bombeiros e das polícias que se chegasse a este ponto?»
Porque sem Tutela com visão do real-todos. Sem tempo para pensar o conjunto, a fazer políticas de 'simpatia'. Fácil e popular.
Todos mais ocupados com a 'corporação' e estatuto social, do que com o colectivo, o país, o povo.
Sem margem para grande auto-crítica, que os exemplos vieram e vêm de cima: Gobierno, Cortes, el mundo Empresarial Público.
Os militares? Tudo fizeram por não incomodar o poder político, Yes Minister, tudo fizeram por assegurar carreiras, mais cargos superiores, mais estados-maiores de burocratas que soldados, assim tendo chegado ao deserto de Tancos.
O PS, refere no seu Programa 2005, a criação de um EMD-estado maior da Defesa. Para dar um ar de novidade ao programa, logo caído no vazio.
Como? Porque sim.
Importante importante, a rotina e rotinas dos gabinetes de ministros e ministrinhas excelentíssimos. A fazer currículo.
A bem do Regime.
Conquistada a democracia,conforme os velhos políticos envelheceram ficamos entregues nas mãos dos"jotinhas"Homens e mulheres que pouco se prepararam e chegaram a lugares cimeiros nos partidos através de tricas e compadrios Não admira pois,que em situações graves como as recentes o interesse partidário ,estivesse acima do interesse colectivoQue a incompetência ,a falta de preparação ,a desorganização viessem ao de cima
Ilha da Lua
Mesmo a um nível mais baixo, como o das autarquias, isso se vê.
Moro numa pequena cidade, de 30 000 habitantes, e sei bem o que é o facciosismo partidário.
Problemas graves (como o lixo não recolhido) são graves ou não são graves conforme o partido de quem opina.
O partido que ocupa a autarquia há 16 anos (actualmente com maioria absoluta... por 16 votos) comporta-se indecentemente para com todos os outros, não ouve críticas, sabota as propostas alternativas, etc.
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