A TROPA
Por Joaquim Letria
Nasci e cresci no Alto de Campolide, numa confluência de quartéis
que hoje já não existem. Eram Caçadores 5, Metralhadoras 1 e Artilharia 1 que,
no tempo das golpadas da primeira república, se opunham ao Quatro de Infantaria
e ao Infantaria 16 de Campo de Ourique. Naqueles tempos, ninguém roubava armas
dos quarteis e as munições dos paióis caíam com abundância no jardim e quintal
da casa onde nasci. Ainda me lembro de obuses por rebentar que o meu avô
tornava inofensivos, fazendo com eles, em brilhante cobre, jarrões para flores
ou bengaleiros para se guardar chapéus de chuva.
Recordo-me do aproveitamento que abertamente se fazia dos
favores e privilégios dos oficiais. Tudo à vista de todos. Era a vida… os
coronéis viviam em vivendas dentro dos quartéis, os impedidos iam às compras
para as senhoras dos oficiais e iam esperar os meninos do comandante à escola,
carregando-lhes as pastas de regresso a casa, enquanto os condutores levavam as
senhoras ao cabeleireiro. Aquilo é que eram Exército e militares superiores!
O resto não existia, eram as praças a cheirar a cotim e
botas cardadas, que se “faziam” às empregadas domésticas das redondezas e os
sargentos carregados de sacrifícios para meterem os filhos a estudar. Era a
prazenteira vida das “criadas e magalas” que o teatro levava em triunfo nas
mais vistosas revistas do Coliseu e Parque Mayer, como no “fado do 31”.
Naqueles tempos os oficiais superiores andavam fardados, os
de cavalaria montados em reluzentes botas altas com esporas. Não era como agora
que não vemos militares de uniforme, não sei se por vergonha, mas a verdade é
que não se vê uma farda número um. E quando vemos os generais a assistir a um
desfile ou numa reunião com o Governo, parecem mais bombeiros voluntários da
Arrentela ou flautistas da Timbre Seixalense do que garbosos generais do Estado
Maior das Forças Armadas de um país fundador da NATO.
Os brilhantes carros pretos eram guiados por condutores que
cumpriam o serviço militar obrigatório. Tinham as matrículas MX ou ME, ministérios
da Guerra ou do Exército, que não enganavam ninguém quando esperavam as senhoras
à porta do Grandella, ou levavam os meninos ao liceu. E assim viveram felizes
até ao eclodir da guerra colonial….
O meu pai nasceu na Porcalhota, que hoje se chama Amadora,
porque o meu avô mandou a família para o campo, para a lhe poupar os sobressaltos
dos golpes de Estado e não levar com os estilhaços duma granada que sobrevoasse
Campo de Ourique para aterrar em Campolide, ou duma morteirada de Cavalaria 7. Ficaram
todos ilesos para eu vir a nascer mais tarde, em plena II Guerra Mundial...
Nenhuma situação deixava prever o roubo de armas de guerra
do exército, ou pistolas dos cívicos da Polícia de Segurança Pública daquela
época. Havia sentinelas nas guaritas que se ouviam pelas noites dentro: ” sentinela
alerta!”, ”alerta está!”,” passe palavra”…
Afinal de contas, mandavam-nos matar-se uns aos outros mas
tinham muita graça.
Publicado no Minho Digital
Etiquetas: JL
2 Comments:
Já lá dizia o Luís Vaz que se mudam os tempos e as vontades
Um texto evocativo e não só nem principalmente, muito saboroso.
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