22.1.18

Disto hoje não se vai ouvir falar

Por Ferreira Fernandes
Estou em Luanda. Conheci um homem que persegue os emails que ele próprio envia. Palmilha Angola a estudar as estradas a construir. Depois manda um email para o ministério correspondente. Logo a seguir, vai lá. Diz à secretária: já recebeu o meu email? "Já." Já fez seguir? "Ainda." Mana, faz lá seguir... "Vou fazer." Mana, não espera, faz agora. 
Depois, o homem sobe ao chefe de gabinete: já recebeu o meu email? "Acabei de receber." Já mandou para o diretor? "Vou mandar." Manda agora... "Ok"... 
E assim por diante, o homem que ajuda a construir estradas, sobe escadas. Ele usa a @ tal como Fidípides, o maratonista de Atenas, usava as pernas: perseguindo, para o seu trabalho prosseguir. Bendito. 
Como aquela quitandeira luandense que ontem vi subir uma calçada com uma carta na cabeça. Em cima da carapinha, um tabuleiro, em cima, um envelope e em cima deste uma pedrinha para a carta não voar. Ela levava sacos de fruta e os dedos estavam impróprios para levar a carta à mão. Então, ela arranjou-se para cumprir o que a encarregaram de fazer... 
Eram histórias destas, de sal da terra, que eu gostaria de contar da minha terra. Histórias que nunca se ouvem, não é? Angola está sequestrada por uma ideia verdadeira e desgraçada, mas incompleta — se a julgamos só por ela, treslemos aquele país de gente que merece respeito. E de quem nunca se ouve falar. 
No sábado, na televisão do Estado, a TPA, ouvi um debate entre quatro mulheres - uma socióloga, uma jornalista, uma ativista e uma advogada. Eu já ficaria encantado só de ouvir a minha língua falada da forma tersa e limpa, como o meu querido amigo Joaquim Pinto de Andrade me ensinou ser próprio dela. Mas foi mais do que isso. As quatro mulheres discutiam a corrupção. 
Uma lembrou que falar de corromper pode deixar só vaga ideia, urge é falar de factos: corromper é menos escolas, uma indecência! 
Outra avisou que já passou o tempo da pedagogia, hoje quer-se saber quem e o quê. 
Outra, ainda, falou do inominável que é "roubar fundos do combate à malária." E outra fez o retrato de corpo inteiro da corrupção. Era o saque do bem comum, era a irresponsabilidade mas era também a traição. Uma nação a construir-se precisa de orgulho: "Outros países fazem-nos doações, coro de vergonha quando alguém de nós rouba até o que nos dão." Eu sorri, agradecido. 
Quatro mulheres desencarceravam Angola da corrupção — não acabar com esta, mas lembrar que aquela é muito mais. Por exemplo, uma mulher com uma carta à cabeça subindo a calçada.
DN de 22 Jan 18

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