UM DESAFIO EXALTANTE
Por Guilherme Valente
Sejamos família dos que não têm família, pátria dos que não têm pátria.
João Paulo II
Que fazer com os migrantes? A interrogação mais dramática do nosso tempo
Kamel Daoud, é um intelectual argelino combatente por um islão iluminista que continua a viver entre Ouran e Paris, apesar de condenado à morte por um imã. Ensaísta e romancista (Meursault,Contra Investigação,Editora Teodolito) assina no semanário Le Point uma crónica. escrita quase sempre “no fio da navalha”, que respigo e divulgo neste meu artigo.
Perante o afluxo de refugiados, de migrantes, o que fazer? É a interrogação de consciência que Daoud coloca (28/6/18), dizendo ser a pergunta que mais teme lhe façam. É de facto o grande desafio para o mundo, a grande interrogação nos dias que vivemos.
A vaga de migrantes, determinada por circunstâncias muito concretas que se conhecem, marca o fim de uma época em que o emigrante “era viajante, nómada, descolonizado, inconformado com o destino sem saída na sua terra, aventureiro, para passar a ser hoje vitima, desespero, grito, cativeiro, trunfo eleitoral”.
A pergunta pressupõe uma outra, mais dramática para as consciências: o que devemos fazer perante os migrantes que “nos entram em casa”? Prendê-los, separá-los e tratá-los como criminosos, à maneira de Trump? Deixá-los morrer, no Mediterrâneo, mar de coragem e aventura, que nos trouxe Europa e é agora um mar de cadáveres? O que devemos responder... eu, nós, tu?
Não é um problema apenas do Ocidente, coloca-se por toda a parte, no Magreb, “junto da minha casa, em Oran”, denuncia Daoud, e no resto do mundo: os migrantes não estão a chegar apenas à Europa ou aos EU, enchem as ruas da Argélia, de Marrocos, da Tunisia, da Jordânia. “E reage-se ali como em todo o lado: com rejeição, ou medo, desconfiança, indignação, protesto, racismo ou compaixão, caridade desorganizada”
“A tradição na África é a de acusar o Ocidente pelos males que a atormentam, julgar a Europa em nome do politicamente correcto, porque foi colonizadora pregando a moral universal. Mas essa acusação deve ser alargada ao mundo árabe”. assume o intelectual argelino.
“Reduzir a questão migratória a Trump, Salvini ou Orban é esquecer os camiões de reconduções desumanas em massa dos migrantes sub-sarianos pela Argélia. É ignorar o racismo nos outros Estados do Médio Oriente”, escreve.
E porque é, ou deve ser, para cada um de nós tão difícil responder à pergunta?
Porque é fácil dizer que acolher é um dever moral, mas não será legítimo ter medo de receber um migrante maliniano na minha cidade, no meu país? Pensar em invasão, insegurança, ameaça, crime?
É fácil dizer frases bonitas, manifestar intenções nobres, mas difícil passar aos actos que possam implicar a segurança dos meus bens, dos meus filhos, o meu conforto.
“Há páginas inteiras na imprensa do Médio Oriente e da África e também da Europa sobre o racismo, a rejeição e a discriminação na Europa. Mas que dizer das expulsões em massa de “africanos”, como os designa a imprensa islamista da Argélia, que são reduzidas no Médio Oriente a faits divers,a um combate contra ´doenças estrangeiras´, “meras” manifestações dedelinquência e criminalidade”.
"Se apelo para que os outros abram os braços, então tenho de abrir os meus. Se peço contas ao Ocidente por se fechar, então tenho de pedir contas à Arábia Saudita e à Argélia por fazerem o mesmo”. “Não existe solução para mim: ter medo é legitimo, mas recusar que este medo seja paralisante é um dever, acolher é uma responsabilidade de todos”. “Como posso exigir ao Ocidente aquilo que não quero exigir a mim mesmo, o acolhimento e a solidariedade?” Interroga frontalmente Daoud.
E quando esse medo não condiciona e paralisa os governos, reverte em benefício dos populismos, isto é, de novos fascismos que usam os migrantes para agitar os fantasmas da raça ou da segurança. A questão dos migrantes, explorada pelo radicalismo político à esquerda e à direita, unido no anti-europeísmo, está a alimentar o sentimento anti-europeu e a fomentar o regresso “às nações”. Um medo que poderá precipitar a Europa para cenários imprevisíveis. “Os medos de hoje fabricam os crimes de amanhã”.
A pergunta transforma-se então noutra, mais concreta: que fazer com o migrante? Deixá-lo morrer? Mas a morte do outro... é a morte de nós.
Os Europeus devem ter presente a matriz da nossa Europa, uma região do mundo cujo mito fundador é um mito da emigração.
É esse o tema da Eneida,um herói que não tendo conseguido salvar a sua Tróia, no Médio Oriente, parte cumprindo a vontade dos deuses em busca de uma outra pátria. Viaja, atravessa o mar, não no regresso ao conforto da sua Ithaca como Ulisses, mas para fundar uma pátria nova. E é assim que nasce... Roma. Um mito fundador que o governo italiano devia ser o primeiro a não esquecer. Todos nós europeus, portugueses, somos herdeiros de recém-chegados. O grande desafio do nosso tempo é organizar uma uma política da emigração justa, viável, bem recebida, aceitável pelos europeus.
Para nos reencontrarmos com o espírito europeu, devemos encontrar também neste caso, in extremis,“um equilíbrio dinâmico entre a insensibilidade, que nalguns casos será mesmo crueldade, a compaixão, a generosidade, a inteligência. Por agora os insensíveis parece terem a iniciativa. Chega-se mesmo a afirmar querer expulsar 500.000 migrantes.
Ora não é assim que se defende a Europa, não é com uma política de expulsões e de deportação em massa absolutamente revoltante e incompatível com a sensibilidade europeia.
A solução revela-se, então, num registo diferente, mas óbvio: evitar que haja migrantes.
O que é imperativo é adoptar uma nova política externa europeia de intervenção nos países de partida, para dissuadir a migração, estancar a hemorragia do capital humano, vital, afinal, para o desenvolvimento próprio, para o futuro dessas regiões agora devastadas. E, antes de mais, acabar com as intervenções de lesa-humanidade, como a que governos dos Estados Unidos e da França fizeram designadamente na Síria e na Líbia. Obama já o terá reconhecido.
Um único refugiado na Alemanha custa aos contribuintes alemães 20.000 euros por ano; com um quinto dessa importância poderiam ser criados postos de trabalho no local de origem que permitiriam viver a uma dezena de pessoas, refere o filósofo alemão Peter Sloterdijk num seu livro sobre a crise europeia, (Après le dilugePayot). Mas para isso é preciso que a Europa tenha uma posição comum, espírito e determinação de solidariedade – que é também revitalizadora do projecto empolgante de uma pátria comum europeia. É preciso, também para este objectivo incontornável e edificante, mais Europa.
Para isso a esquerda, a esquerda liberal e democrática, tem de regressar aos seus valores universalistas fundadores, libertar-se do contágio identitarista e obscurantista que agora a debilita e também ameaça correntes da direita liberal, também seduzida pela moda.
A questão dos migrantes não pode ser resolvida com o fechamento das nações, que também entre nós a extrema esquerda militantemente anti-europeísta deseja.
O fechamento não permite resolver, aliás, nenhum dos outros grandes problemas do nosso tempo, todos globais, só resolúveis no quadro do entendimento e da acção concertados de todos os Estados do Planeta.
A questão dos migrantes prova aos europeus (aos que não estão cegos pelo ressentimento e a ideologia) a necessidade de fronteiras exteriores comuns. Melhor e mais Europa, é o que os Europeus e o Mundo precisam. Não há felicidade sem bondade, dizia Lacan. Uma Europa fiel ao espírito universalista e humanista europeu. Uma Europa em que nos orgulhemos de viver.
Publicado no “Observador”
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1 Comments:
Sim, concordo.
Não vejo outra via...
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