30.1.20

Delação premiada, ética e as minhas limitações

Por C. Barroco Esperança
Há tão grande excitação em torno de um larápio de dados informáticos que exigirá uma venera para o autor como reparação da injustiça da sua prisão preventiva.
Talvez a minha hierarquia de valores esteja a precisar de aferição e os princípios éticos divirjam do senso comum, quiçá por um exacerbado apego aos direitos individuais e ao respeito pela inviolabilidade do domicílio, ou por rudimentar conceito de cidadania.
Não consigo compreender que alguém que invada domicílios e se aproprie de bens que, afinal, eram fruto de crimes ou documentos que os provem, possa ser ilibado do assalto, reabilitado como cidadão e incensado como herói. Afinal, ele não roubou, furtou, e só lhe faltou a legitimidade policial com o respetivo mandado judicial, meras burocracias.
Sem preparação jurídica nem sensibilidade para avaliar a dimensão dos benefícios que o furto pode prestar à sociedade, refugio-me no conceito rudimentar de que o furto é um roubo, quem rouba é ladrão e quem defende ladrões é cúmplice, salvo o legítimo direito de defesa a que todos temos direito e que cabe aos advogados exercer.
É curioso que, enquanto os Papéis do Panamá jazem há anos na quietude de dois órgãos de informação, surgem novos casos que os fazem esquecer e heróis insuspeitáveis que alimentam a voracidade mediática numa onda justicialista que gera perplexidade.
O que está em causa não é saber se há nas investigações uma orientação conduzida pela comunicação social, que as hierarquiza e define o grau de urgência, o que me inquieta é a minha anormalidade, não ver num marginal um herói, não aceitar integrar campanhas de linchamento de uns arguidos ou heroicização de outros, incapaz de fazer a destrinça entre delinquentes, entre quem deve e quem não deve ser punido, entre heróis e vilões.

Penso saber que o furto é o roubo sem violência e que a moldura penal é diferente, mas o furto de bens atrás do computador é sempre um crime que não suja as mãos nem exige grande força. É uma apropriação que não estraga o vinco das calças, não exige escalar muros e não corre riscos físicos, mas não deixa de ser o crime que lesa bens materiais e devassa a intimidade da vítima.
Há tal avidez pelo escândalo que se ignora a clareza do artigo 126.º n.º 3 do CPP: “São igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respetivo titular.”.
É difícil aceitar que um sobredotado útil possa ser legalmente amoral, mas talvez sejam as minhas as limitações cognitivas que não me permitem o entendimento que devia.
No ar, anda aí um velho problema, a delação premiada por que aspiram muitos.

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