Grande Angular - Um país dividido
Por António Barreto
A “união nacional”, pelas conotações históricas que tem, é sempre má. Já a unidade nacional merece discussão. Quando esta se perfila no horizonte como resposta a perigo ameaçador ou como exigência diante de crise excepcional, uma relativa unidade, feita de convenção voluntária e contrato assumido, pode ser de grande utilidade e de real eficácia para lutar contra crises e ameaças.
O problema, muitas vezes, reside na definição de perigo e de ameaça, assim como de crise ou de excepção. Não é difícil perceber que as situações são mais claras do que as definições prévias. Invasão inimiga, catástrofe natural ou de origem humana, pandemia, acidente grave e inesperado ou crise mundial são suficientemente explícitos para se reconhecerem quando estão diante de nós, sem que haja necessariamente acordo formal prévio. É verdade que há sempre, felizmente, quem discorde, mesmo se está errado. Mas a percepção de uma grande crise é mais fácil do que se pensa.
A epidemia actual transformou-se rapidamente numa ameaça excepcional, reconhecida por quase toda a gente. Houve polémicas sobre a estratégia sanitária e controvérsias sobre os planos para cuidar dos efeitos sociais da doença. É verdade. Mas o clima prevalecente foi e tem sido o de unidade e o de uma relativa moderação de rivalidades. Apesar de quase toda a gente ter ideias definitivas sobre o assunto, da biologia à economia, da física às finanças, a verdade é que o litígio ácido e crispado tem sido evitado. Uma espécie de moratória do afrontamento foi aceite por partidos e instituições, por associações e comunidades. Não se pode dizer que a pandemia criou uma trégua política, mas estamos perto disso. O que não é particularmente negativo, dado que a unidade, temporária por definição, faz-se justamente para atacar problemas graves, crises e ameaças.
Ao contrário do que defendem os amantes das fracturas, a contenção política e social é muitas vezes um instrumento indispensável para resolver crises graves. Sobretudo quando resulta de esforço voluntário e conjunto levado a cabo por partidos políticos, instituições, associações, sindicatos, comunidades e outras formas de agremiação. São conhecidos, pelo menos na Europa, múltiplos casos de “pactos de paz social”, de “acordos nacionais”, de “coligações nacionais”, de “convenções” e de outras formas de criar uma unidade, geralmente temporária e com objectivo definido. Na Suíça, em Espanha, na Itália, na Alemanha e até em França viveram-se ou vivem-se situações destas que foram aliás de enorme utilidade para o desenvolvimento e para o funcionamento das instituições. Em Portugal, poucas experiências decorrem desta necessidade ou deste objectivo. Em certa medida, talvez a Constituição de 1976 represente um momento desses, de grande unidade entre forças livres e de colaboração voluntária. Outros esforços, como sejam o famigerado “bloco central” de 1983 e o “compromisso nacional” de 2011, não tiveram o mesmo impacto nem consequências equiparáveis. Deram um notável contributo para a resolução das crises, mas não tiveram a profundidade daquela primeira experiência.
O clima de relativa unidade que se vive agora é útil, mas insuficiente e não tem futuro. Trata-se, perante perigos ameaçadores, de uma espécie de convergência inescapável sem estratégia global nem metas definidas. Tem uma amplitude de objectivos extremamente reduzida e resulta da inevitabilidade mais do que de uma atitude voluntária. Não propõe um esforço comum, não projecta acções futuras nem programa políticas ulteriores.
Ora, Portugal necessita de um esclarecimento político essencial e de um esforço comum capazes de fundamentar coesão, decência e desenvolvimento para os próximos anos. Antes da pandemia, já se sabia que o país caminhava aceleradamente para um afrontamento. Como nunca nas últimas décadas, a divisão entre esquerda e direita desenha-se no horizonte com nitidez. Já não se trata da divisão entre democracia e não democracia, como foi o caso dos primeiros anos após o 25 de Abril: agora é cada vez mais entre esquerda e direita. Com uma singularidade: “esquerda” inclui as esquerdas não democráticas, enquanto “direita” inclui igualmente as direitas não democráticas. Sob este ponto de vista, a situação política nacional raramente esteve tão polarizada e tão radicalmente dividida como hoje. O que não é muito favorável ao desenvolvimento económico e social.
A convergência de vários factores de crise é geralmente nociva. Até se inventou uma expressão interessante: a “tempestade perfeita”. Não sabemos, ainda, se esta existe ou não, se está presente em Portugal ou não, mas sabemos que há muitos argumentos nesse sentido, a começar pela simultaneidade de causas externas e internas. O recuo das democracias nas Américas e na Europa é um mau sinal. A ascensão do nacionalismo autoritário na Europa e na Ásia é flagrante. A crise da defesa ocidental e europeia, em resultado da política americana e da agressividade russa, é real, já não é apenas uma hipótese. As dificuldades de relançamento económico da Europa e de reorganização da União são as maiores de sempre. As sequelas da crise pandémica são incomensuráveis e ainda hoje difíceis de enumerar.
Todas as razões externas e globais têm consequências em Portugal. A essas, acrescentamos evidentemente as nossas próprias. A divisão entre esquerdas e direitas, agora acrescentadas das respectivas extremas, é radical e dificilmente ultrapassável. A animosidade e a contradição entre sectores público e privado (na economia, na saúde, na educação…) atingem graus inéditos e nefastos. O elevadíssimo grau de corrupção e de promiscuidade financeira e política exige uma justiça pronta e eficaz que não temos. O agravamento da desigualdade social e da ineficiência dos serviços públicos, em resultado da pandemia, é visível e inquietante. A inclusão, no debate político, da questão racial, é uma novidade de efeitos imprevisíveis, mas seguramente ácidos. A retórica do antifascismo e do anticomunismo torna todas as soluções mais difíceis.
Qualquer esforço de desenvolvimento, de coesão e de paz social, exige unidade e convergência de esforços. Sem receios atávicos da “união nacional”. Seria tão bom e tão útil ao país que as principais forças políticas percebessem!
Público, 23.8.2020
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1 Comments:
V.Exª opina bem. Há aquela velha " uma no cravo outra na ferradura"
Desde o 25 Abril, o PS é o único partido que não se adapta a ser 2º, sendo até o que menos colaborou.Nem após ter pedido os 77.000M € assumiu o seus erros.
E A.COSTA é do pior que o PS já teve. Irascível, truculento, impelente da demagogia. Um vendedor de banha da cobra.O ARTISTA !
Cumps.
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