3.4.21

Grande Angular - A democracia a funcionar

Por António Barreto

Acabou a paz. Mas não começou a guerra. Ressalvem-se as comparações, mas houve em tempos uma situação tão estranha que ficou para a história com designação apropriada: a “drôle de guerre” ou a “phoney war”. Depois de a Alemanha ter invadido a Polónia e de a Grã-bretanha e a França terem declarado guerra aos alemães, viveu-se um período estranho, durante uns meses, em que as potências estavam em guerra, mas nada acontecia. Esse período, entre Setembro de 1939 e Maio de 1940, ficou famoso na história e ganhou aquele epíteto. Terminou, como era de esperar, em desastre.

Entre nós, salvaguardadas as proporções, entre instituições soberanas, entrámos em período já sem paz, mas ainda sem guerra. Apesar de os partidos e o Presidente terem deliberadamente posto em causa os equilíbrios existentes, ainda há maneira de coexistir sem dramas excessivos. Mas podemos ter a certeza de que a paz acabou. Os órgãos de soberania estão em guerra, mas nada acontece por enquanto. O Presidente cessou funções de “seguro de vida”. E a previsível inconstitucionalidade da lei que promulgou nada vai facilitar. O entendimento tácito e parcial existente entre o Governo e o PSD dissolveu-se de uma vez para sempre. A solução de colaboração forçada, com tropelias, entre o governo e as esquerdas parece também chegada ao fim. Todos sabem que as próximas eleições, apesar de autárquicas, vão ditar os prazos de vida dos partidos. Ninguém quer ser apanhado em colaboração benevolente com o governo, situação desconfortável em período pré-eleitoral.

Todos sentiram que uma posição desprendida de interesses menores poderia ser prejudicial. São os males e as incertezas dos governos minoritários. Dos governos à bolina. E dos governos à deriva. Mas também são os males do semipresidencialismo. Os políticos fazem cada vez menos o que devem fazer e cada vez mais o que julgam necessário para não perder a face, ganhar uma vantagem, incomodar o adversário e enfraquecer o concorrente.

Esperava-se mais e melhor dos partidos e dos nossos representantes, em tão dramático período. Não se pretendia, com certeza, a unanimidade de políticas, nem a abdicação de pensamentos próprios. Mas esperava-se um sentido elevado das conveniências. Forçar leis no Parlamento faz sentido. Violar a Constituição e promulgar leis inconstitucionais não faz sentido.

Muitos dizem “é a democracia a funcionar”! Certo. O que não quer dizer que seja absolutamente um bem. A democracia a funcionar também pode dar para o torto. Muitas crises começam assim. Vivemos tempos absolutamente difíceis, cada dia traz mais uma complicação, seja sanitária ou financeira, económica ou política. Está criada uma situação de contradição, de afastamento e de desconforto, em todo o caso como tal percebida e sentida, o que faz com que vivamos momento difícil e crítico. Ora, esperava-se que a cooperação fosse mais intensa e mais resistente. Não é. Continua a ser a democracia a funcionar, mas a situação é má.

Deliberadamente, o Parlamento aprovou lei que contraria o governo, que colide com o orçamento e que viola a regra constitucional. O governo justamente reage. O Presidente da República, inesperadamente, promulga, apesar de, para atenuar as eventuais consequências, argumentar com especulação jurídica pouco rigorosa. O governo adequadamente recorre para o Tribunal Constitucional. Veremos o que se segue. Mas o clima está criado.

Da parte das esquerdas, foi o habitual. “Vá-se buscar o dinheiro onde ele está”, o método e a maneira não interessam. Há sempre dinheiro para as boas causas sociais, para o que se vai à dívida, maneira de imprimir moeda. Para as esquerdas, é à bruta ou à força, com ou sem Constituição, o que interessa é a causa social. Da parte do PSD, foi inesperado este exercício de pura demagogia vindo de um partido mais habituado a respeitar as formas. É estranho e inquietante que uma grande parte da esquerda e da direita parlamentar se tenha unido, à volta de um método demagógico e de um propósito claramente inconstitucional, para pôr em causa e incomodar o governo.

Há problemas com a acção do governo relativamente à pandemia e aos seus efeitos? Há. Enormes. Com hesitações, guinadas de orientação, má adequação de métodos e serviços, falta de clareza na informação, insuficiência de meios e compreensão medíocres das consequências nas escolas e nos hospitais, pelo menos. Para todos estes problemas há críticas e alternativas, práticas, políticas ou jurídicas. Tudo, menos violar a Constituição.

Logo saberemos o que vai dizer o Tribunal Constitucional. Mas é pouco provável que decida pela constitucionalidade da coisa. Se o fizer, mesmo invocando “estado de necessidade” ou “imprevisibilidade das despesas futuras”, prestará um mau serviço. E então é que não se poderá dizer que é “a democracia a funcionar”. Não. Nessa altura, será a demagogia e a incerteza errática da decisão política contra a certeza do direito.

Se o Tribunal Constitucional aceitar a lei dos apoios sociais, estará a legitimar a incerteza do direito, a avalizar o governo de assembleia e a legitimar a demagogia. Não haveria, depois disso, qualquer razão para impedir que o Parlamento alterasse à vontade os orçamentos, decidisse gastar o que lhe apetece, fizesse demagogia eleitoral e se entregasse voluptuosamente à irresponsabilidade. A tradição de seriedade e de responsabilidade, para já não dizer de rigor, permite pensar que o Tribunal não cairá nesta armadilha.

Houve dirigentes partidários que disseram simplesmente que era necessário porque havia “gente a viver com dificuldades”! Como se a constitucionalidade fosse uma questão de pobreza ou de riqueza. Uma líder partidária garantiu que era constitucional “porque há dinheiro!”. Ficámos a saber que, para esse partido, a constitucionalidade é uma questão de contabilidade. Vários dirigentes, à esquerda e à direita, disseram sem gaguejar que “já antes se tinha feito algo parecido”. Houve quem garantisse que era perfeitamente igual a um orçamento suplementar ou rectificativo. E outros dizerem que a Constituição não quer dizer bem “as despesas”, como diz, mas antes “a despesa” total. O facto de se pretender, agora, gastar primeiro, para depois, legalizar, por vida de leis retroactivas, não comoveu os que tentaram fazer o teste ácido. Se esta lei passar e for considerada constitucional, nunca mais a demagogia conhecerá um freio.

Público, 3.4.2021

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