15.5.21

Grande Angular - Tempestade perfeita

Por António Barreto

Parecem reunidas as condições para uma grande tempestade. Perfeita ou não, é o que falta saber.

Por onde passou, a pandemia deixou mortos e feridos. Isto é, por todo o lado. Na sociedade e na economia. Nas instituições e nas empresas. Nas comunidades e nas classes, sobretudo nas mais pobres. A desigualdade social aumentou. A tensão racial, deliberadamente exacerbada, está mais visível. Há gerações que vão sentir, por anos, as dores desta crise. Se houver força, meios e honestidade, talvez seja possível acudir aos vivos. Mas a sociedade está ferida, ninguém duvide. A ponto de que já poucos acreditam no optimismo: desconfiam mesmo de que este é o próprio do fala-barato.

Na vida política, previsivelmente, houve de tudo: cooperação, solidariedade, rivalidades e oportunismo. Mas o mais visível é muito negativo. O debate político está a ficar insuportável. O teor das discussões parlamentares atinge inéditos níveis de baixeza. Quem tem o poder (o PS e as esquerdas) tem cada vez mais receio de o perder, apesar de não ter adversário à altura. Quem não tem o poder (o PSD e as direitas) pressente que não vai ser desta que lá vai, que não tem pessoal nem argumentos. A extrema-direita não esconde uma espécie de justicialismo histérico que a toda a gente faz mal. Certos grupos de esquerda, a começar pelo Bloco, falam com o desespero de quem está a perder a revolução, a poucos metros da Bastilha ou do Palácio de Inverno. Ministros, Secretários de Estado e autarcas perdem a compostura. Há responsáveis políticos que se exprimem como carroceiros. Já há ameaças à liberdade de expressão. Crescem as vontades de controlar a comunicação. O debate político está envenenado. Não apenas porque faltam décadas de experiência democrática e gerações de educação política, mas também porque tudo parece frágil e incerto.

As alianças, as reais e as esperadas, estão tremidas, entre parêntesis. Nada é seguro. Todos querem ver se escapam à necessidade de fazer coligações. O PS e o PSD sonham com maiorias absolutas, mas delas estão longe. Gostavam de se ver livres dos seus prováveis aliados, mas não podem dispensá-los. PCP, Bloco, CDS, PAN, IL e Chega querem absolutamente tornar-se indispensáveis. Sabem que, se falharem estas, não haverá tão cedo novas oportunidades.

Todos esperam pelas autárquicas (o que nem sempre é uma boa medida) para ajustar contas internas nos partidos. Em todos, às abertas ou discretamente, prepara-se a substituição ou a sucessão de líderes. Nenhum escapa, PS, PSD, CDS, Bloco e PCP. As batalhas e as intrigas pela sucessão estão abertas e são visíveis em todos os principais partidos. É bem provável que, dentro de três anos, nenhum dos actuais líderes se mantenha em exercício. O que nunca se faz sem sangue: as lutas internas têm sempre causas e consequências cá fora.

São notórias as dificuldades em manter a ordem pública. Uma evidente incapacidade revelou-se em Odemira, como se vê no futebol e noutras manifestações. Parece que a ordem pública só se mantém e é garantida quando está protegida por organizações civis ou quando uma entidade privada decide mantê-la, como se tem visto. A tranquilidade e a segurança parecem mais dependentes da Igreja católica, do PCP e da CGTP do que das autoridades.

Algumas das mais importantes funções de Estado ou de soberania estão em crise aberta. A Justiça, já se sabia. Agora, de modo inesperado, o governo abriu um profundo e inútil diferendo com parte importante das Forças Armadas, que já sofriam há muito de insuficientes recursos humanos e financeiros. A declaração pública assinada por quase todos os mais importantes e prestigiados chefes militares das ultimas décadas, a começar pelo Presidente Ramalho Eanes, ele próprio antigo CEMGFA e CEME, é de uma gravidade extrema, pelo que é assustador o silêncio do Parlamento, do governo e dos partidos. Espera-se todavia que o Comandante Supremo das Forças Armadas, o Presidente da República, se exprima com brevidade, até porque tem de se definir perante os diplomas legais que lhe vão chegar às mãos.

Há dinheiro. Muito dinheiro. Para quem o apanhar. Para quem estiver no poder, no governo ou na autarquia. Dos antigos fundos europeus, sobram milhões não utilizados. Dos novos, que estão quase a chegar, esperam-se milhares de milhões. O seu gasto não depende de privados, nem de empresas, depende exclusivamente das autoridades, do governo e dos autarcas. Haver dinheiro pode ser tão perigoso quanto a sua falta. Os apetites vão agudizar os nervos e as energias.

Há falta de dinheiro. Muita. As empresas que sobrevivem estão exaustas. Os trabalhadores e empregados dos sectores privados estão inquietos e empobrecidos. Os possíveis investidores nacionais não querem arriscar. Os grupos internacionais não estão por enquanto interessados. As famílias não têm para poupar, muitas delas aliás nem sequer para chegar ao fim do mês. Se a vida económica recomeçar ainda em 2021, vão ser necessários anos de esforço para recuperar, relançar o turismo, elaborar projectos, atrair investimentos, criar emprego, poupar, refazer o sistema educativo e reorganizar os serviços de saúde actualmente exaustos e endividados. Vão ser precisos anos para recompor os sentimentos, a esperança e até as famílias.

A sociedade e a economia estão dependentes de recursos financeiros anormais e excepcionais. Que não dependem do curso regular das actividades económicas. Dependem, isso sim, das decisões políticas, da importância de cada um, do poder negocial, da força das convicções, da capacidade de persuasão e do interesse clientelar. Como é sabido, à vista das últimas décadas, Portugal não tem revelado aptidão e experiência para tratar com honestidade a decisão política, económica e financeira.

Não fora a formidável capacidade amortecedora do Presidente Marcelo e já estaríamos seguramente a navegar em águas furiosas e em tempestades impossíveis. Ao contrário de todos os seus antecessores, o Presidente percebeu desde o início que tinha de ter uma aliança forte e durável com o governo e a maioria parlamentar. O que muito tem ajudado no seu papel moderador. Mas as ambições estão à solta. Os nervos em brasa. Reina a desconfiança. E os que já perceberam o papel do Presidente querem agora ver-se livres dele. O que é perigoso.

Público, 15.5.2021

 

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1 Comments:

Blogger Fernando Ribeiro said...

É triste ver uma pessoa como António Barreto ficar azeda, velha e descrente do futuro. A sua visão catastrofista não convence quem, como eu, conheceu e viveu tempos incomparavelmente piores, antes de 1974. Apesar de todos os profetas da desgraça, o 25 de Abril aconteceu e libertou-nos da ditadura, da PIDE e da morte na guerra colonial. Hoje estamos infinitamente melhores do que estávamos em 1974 e iremos continuar a estar, independentemente das profecias dos "Barretos" deste mundo.

15 de maio de 2021 às 17:35  

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