4.7.21

Revista “Nova Costa de Oiro” de Junho de 2021


HÁ MUITOS
anos, estava eu, com o meu saudoso tio Augusto, na sala de jantar da sua casa, quando sucedeu uma coisa que nunca esquecerei, motivada por uma brochura que estava ali em cima da mesa.

— Sabes o que é isto? — perguntou-me ele, apontando para a fotografia que se via na capa.

— Claro, tio. É a Praça do Comércio, em Lisboa, e o que se vê ao centro é D. José montado num cavalo — Respondi, admirado com tão insólita pergunta.

— Nada disso — retorquiu ele, para meu espanto —, o que está lá na praça é apenas uma REPRESENTAÇÃO, em bronze, dessas personagens. Por sua vez, o que aqui vemos é uma REPRESENTAÇÃO gráfica dessa REPRESENTAÇÃO — E, dito isso, recostou-se na cadeira, abrindo um novo maço do seu inseparável “Português Suave”, não escondendo alguma decepção por eu não lhe ter dado a “luta” que tanto apreciava.

Como se percebe, esse meu tio era obcecado pelo rigor — o que, sendo homem de Ciência, só era de louvar. Mas não era apenas com isso que ele enervava os adversários nas polémicas que tanto apreciava; era também com a sua inesgotável panóplia de argumentos e factos que desenterrava da sua prodigiosa memória. Por isso, quem se metesse a polemizar com ele tinha de estar bem preparado — não só quanto ao tema a debater, como quanto à arte de discutir, em que era mestre insuperável.

Aliás, também nunca esquecerei o que sucedeu quando, numa outra ocasião, estávamos envolvidos numa polémica interminável cujo tema já não me recordo; de facto, já não sei qual era o assunto da discussão, mas sei que ela se emaranhou de tal forma que, a certa altura, já nem sabíamos quem defendia o quê — até que eu, com um sorriso que era também uma sugestão de intervalo para almoçar, me lembrei de dizer:

— Então, tio? Afinal estamos de acordo!

Ao que ele respondeu, quase saltando da cadeira:

— De acordo, NUNCA!

 

ORA EU recordo esses e outros episódios semelhantes sempre que vejo as azedas discussões nas nossas redes sociais, pois penso como seria interessante ver por lá muita gente como o meu tio Augusto. Mas é claro que isso nunca seria possível porque, para que uma discussão seja séria, é preciso que os participantes tenham, além de um mínimo de conhecimentos acerca dos assuntos em causa, abertura de espírito, honestidade e humildade — única forma de poderem, se for caso disso, reconhecer que estavam errados. Ora, como se sabe, nada disso abunda nesse ambiente de “Facebooks” porque, mesmo no caso de pessoas com igual nível de cultura e inteligência, a maioria das discussões são impossíveis, porque hoje em dia o que predomina é o FANATISMO, e “Um fanático é impermeável à lógica e até mesmo aos factos” — como preveniu Carl Sagan —, sendo absolutamente estéreis discussões com pessoas que, devido à sua cegueira sectária, conseguem defender o indefensável e desculpar o indesculpável.

 

AQUI chegados, espero que não me perguntem o que é que tudo isto tem a ver com Lagos, pois basta dar uma volta pela cidade e pelas respectivas redes sociais para se perceber como não falta quem defenda, p. ex., o corte indiscriminado de árvores ou o desprezo pelo património. Mas isso já é assim há muitos anos, pelo que não é novidade.

O que já é novidade é ver como a nossa Polícia Municipal, tendo iniciado as suas funções no passado dia 3 de Maio, apareceu, apenas 10 dias depois, a ocupar alegremente os primeiros lugares de estacionamento reservados para deficientes no Parque da Frente Ribeirinha. Felizmente, há sempre várias formas de encarar as coisas: neste caso, como era 13 DE MAIO, não é de descartar a hipótese de Nossa Senhora ter feito o milagre dessa conversão dos lugares — com a mesma facilidade com que o Seu Filho transformava água em vinho. Longe de mim, pois, invectivar tão inofensivo milagre; aliás, deve estar tudo bem, como sempre sucede nesta nossa terra, cujo “povo é sereno”, só se insurgindo quando alguém destrata um cão, um gato ou um casal de cegonhas.

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