A PIDE – Memórias da juventude (Crónica)
Por C. B. Esperança
Quando, em 1961, como professor agregado, fui colocado no Bairro dos Penedos Altos, na Covilhã, não podia imaginar que começaria aí a perseguição do Diretor Escolar a um jovem de 18 anos que, com vencimento de miséria, não tinha sequer direito a assistência médica. Os funcionários públicos só eram assistidos na tuberculose, graças ao desconto obrigatório no vencimento. A ADSE ainda vinha longe.
Ter comunicado que a total ausência de fé me incapacitava para dar aulas de Religião e de explicar o dogma da Santíssima Trindade, levou um padre a substituir-me na aula semanal, obrigatória, de Religião e Moral. Beneficiei de uma hora semanal.
Passei a ser visitado regularmente pelo diretor interino do distrito de Castelo Branco que queria obrigar-me a cortar o bigode, “para não dar maus exemplos aos alunos”, e ficou possesso por lhe retorquir que não seria provável que, na 1.ª classe do ensino primário, os alunos passassem a usar tal ornamento piloso.
O maior confronto sucederia quando reuniu os 45 professores da Covilhã para anunciar que a cidade seria visitada por Sua Ex.ª o PR, almirante Américo Tomás, e que estariam dispensados, e riu alarvemente, os professores com duas pernas partidas. Com uma, iam com muletas, e os seus alunos, alinhados, a bater palmas à passagem de Sua Ex.ª.
Perguntei-lhe se era uma ordem ou pedido, e ficou irado. Perguntou porquê, e disse-lhe, irreverência, que, se era pedido, não acedia e, se era ordem, a queria por escrito. Perante o silêncio dos colegas disse que não iria aturar-me no ‘seu’ distrito. A ordem não veio!
Chamava-se Manuel da Silva Mendes esse prócere do fascismo, que viria a ser o diretor escolar de Portalegre, presidente da Câmara, depois, e, finalmente, um administrador da Casa da Moeda, em Lisboa. O salazarismo pagava bem aos esbirros que o serviam.
Entretanto, na Covilhã, a companhia de democratas e antifascistas tornara-me o alvo das atenções do comandante da PSP, tenente Gaspar, que mandava um polícia conduzir-me à esquadra, quando terminava a tertúlia com os amigos, no Café Montalto, para me dar conselhos até de manhã. Devia sofrer de insónias, e a intimidação continuou até à minha mudança de cidade e de distrito.
Eu sabia que a Pide, alertada pelo padre Morgadinho, um delator compulsivo, andava a vigiar este “professor novo e atrevido, com cara de idiota”, como o virtuoso clérigo me definiu. Não lhe perdoei que me chamasse novo, já com 19 anos, perto da maioridade. O que não sabia, só viria a sabê-lo muitos anos depois do 25 de Abril, que o execrável governador civil da Guarda também me mandou espiar.
Depois de Alfredo dos Santos Júnior, ministro do Interior quando a ditadura assassinou em Espanha o Gen. Humberto Delgado, o cargo de governador civil, depois da efémera passagem de Luís de Almeida, foi ocupado por Mário Martins Bento Soares, de 1961 a 1967, antes de assumir o cargo de chefe da censura, em Lisboa.
A Pide vigiava-me há dois anos e o governador da Guarda andava inquieto, comigo e com a minha mãe. Mário Bento Soares, de tanto odiar o honrado homónimo democrata, não permitia que o tratassem por Mário Soares. Deixou cair o apelido paterno e assumiu para todos os efeitos o nome de Mário Bento.
Quando um dia vi que a minha mãe também era vigiada, veio-me à memória o encontro em Lisboa, depois de 28 meses de ausência, por causa da guerra colonial e vi os sulcos que o sofrimento do filho ausente tinha esculpido no rosto, assim como no do meu pai, que ali se deslocaram para me abraçar à chegada.
Lembrar o regime concentracionário da ditadura é um dever cívico.
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