19.2.22

Grande Angular - Imperdoável

Por António Barreto

O episódio foi grotesco. Ainda um dia se encontrarão os culpados. Partidos? Funcionários? Juristas? Burocratas? Quais? Quem? De que ministério? Com que funções? Quem respeitou e quem agiu contra a lei? De tudo isso se saberá um dia, um pouco, talvez nunca…

Sobra a recordação de um episódio raro na história de Portugal, da Europa e da democracia. Foram cento e cinquenta mil votos anulados, cento e cinquenta mil pessoas que se deslocaram para adquirir os meios de votar, que tinham a certeza de ter satisfeito um direito, que sabiam ter cumprido um dever, que sentiam pertencer a um país, que se identificavam com milhões de outros como eles, que esperavam contribuir para a formação de um parlamento, que queriam ter um representante seu e que deram o seu veredicto para formar um governo! Apesar da repetição, o episódio está aí, claro no seu significado, turvo no seu sentido.

O que aconteceu não deveria ser esquecido. Nem perdoado. É mau que não se conheçam responsáveis, mas é quase fatal que assim seja. Péssimo é que não haja correcção pronta. Muito desta lei necessita ser alterado, mesmo que não se consiga o mais importante que seria adoptar o sistema uninominal. Mas o incidente teve a consequência feliz de permitir uma vez mais olhar para a nossa democracia e para as suas deficiências.

Os emigrantes não votam nos seus círculos de origem, mas sim em fantasmagóricos círculos “Europa” e “fora da Europa”! Não votam nas eleições autárquicas. Têm apenas o direito a quatro deputados, qualquer que seja o número de inscritos. Padecem de representatividade e de proporcionalidade. Sem comunidade de pertença, sem identidade, um deputado da emigração pesa pouco, mas vale milhares de votos mais do que um deputado nacional.

A história do voto reflecte a tradicional maneira de olhar para a emigração. Tanto durante o Estado Novo como com a democracia. Ninguém gosta de olhar para a emigração. Todos têm um sentimento de culpa. Se há emigrantes é porque o país não chega ou porque se vive mal. Assim é que na ditadura quase se escondia a emigração, até porque alguns eram jovens que não queriam fazer a guerra. Uma grande parte da emigração fazia-se “a salto”, clandestinamente, sem passaporte. Pensar ou estudar a emigração era meio caminho para reparar na pobreza dos campos, na falta de trabalho e na indústria incipiente. Por outro lado, as más condições de vida no estrangeiro eram suficientes para avivar o incómodo das autoridades e dos que ficavam em Portugal. Chegou-se a proibir livros e artigos sobre a emigração. Só que… As remessas dos emigrantes passaram a ser a maior fonte de divisas entradas no país. Foi um descanso para a balança de pagamentos. Além de que, na década de sessenta, foi a emigração que aliviou a questão social.

Depois, a emigração diminuiu. Por vários motivos: mais emprego, mais indústrias, mais oportunidades, condições europeias menos favoráveis, o fim da guerra colonial e outras razões fizeram com que a emigração diminuísse. As remessas continuavam, agora superadas pelas receitas do turismo. Nos anos 90, assistiu-se mesmo a um incrível aumento da imigração. No início do século XXI, mais de 5% da população a residir em Portugal era estrangeira. Pouco tempo depois, a prosperidade desapareceu. Muitos estrangeiros foram embora. O número de portugueses emigrantes voltou a crescer. Quase sem medida, como durante as crises financeiras e o período da Troika. Em certos anos, o número de emigrantes ultrapassou os 100.000, coisa só vista durante a ditadura. A emigração é hoje, novamente, o retrato de um país insuficiente.

A emigração portuguesa raramente é vista como sinal de progresso e de procura de oportunidades. É outrossim olhada como sinal de pobreza e de carência. Desde sempre, no espaço público, se associa a emigração a drama e incerteza… 

Politicamente, a reputação da emigração é muito ambígua. Por um lado, é vista como diáspora, saudade, orgulho, por vezes até grandeza no mundo, espírito de aventura e capacidade de adaptação. Por outro lado, os emigrantes são vistos quase sempre como gente de direita, oportunistas, de mau gosto, convencidos. Mas, para ambas perspectivas, são sempre fontes de receita.

Desde 1975 que os legisladores, as autoridades, os governos e os partidos sempre hesitaram quanto aos direitos e deveres a atribuir aos emigrantes. Eram bons para as romagens de saudade, visitas eleitorais, comprar produtos portugueses e para discursos demagógicos sobre o regresso a Portugal. Mas, quando se chegava às eleições e aos direitos dos emigrantes, as coisas ficavam feias. O sentimento prevalecente do legislador era o de desconfiança. Podem aldrabar os cadernos eleitorais, dizia-se. Podem corromper os funcionários dos consulados, pensava-se. Votam com os ricos estrangeiros, suspeitava-se. Têm a tendência para votar muito mais à direita do que os nacionais, temiam uns. É muito fácil organizar o “cambão”, o “cambalacho” e a “chapelada” eleitoral, imaginavam todos. Assim é que os números de eleitores inscritos começaram muito baixo. Já foram menos de 50 000, são hoje mais de um milhão e meio! A participação eleitoral é geralmente reduzida, pode ser de cerca de 10% ou 20%. Na verdade, o direito de voto dos emigrantes foi concedido “a ferros”. Além dos argumentos acima aduzidos, convém não esquecer uma ameaça que habita os sonhos dos nossos legisladores: e se o voto da emigração fosse decisivo para eleger o Presidente de República ou a maioria parlamentar e o governo? Como é possível deixar a capacidade de decisão nas mãos de emigrantes?

A dúvida e o medo inspiraram o legislador. O voto dos emigrantes foi sempre considerado perigoso, dado a aldrabices e facilmente manipulável. Começou por ser limitado. Quando já não era mais possível eliminar tantos eleitores potenciais, alargou-se o direito às eleições presidenciais e depois aceitou-se a “inscrição automática”. Mas os procedimentos complicaram-se. Verdade é que chegámos ao facto inédito de anular 150 000 votos, ter de repetir uma eleição, deixar arrastar um parlamento eleito mas não em funções, adiar um governo e protelar um orçamento.

Mas o pior de tudo isto é a maneira como se tratam os emigrantes. Como se receiam estes portugueses, como se detestam estes cidadãos e como se desprezam estes trabalhadores, aos quais se pede sempre e sobretudo uma coisa: remessas!

Público, 19.2.2022

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