Grande Angular- Ladainha
Por António Barreto
Luís Valente de Oliveira e Miguel Cadilhe, notáveis políticos, técnicos reputados e humanistas de primeira água defendem com veemência a regionalização. Há anos que a ela deram parte da sua vida pública, da sua inteligência e das suas crenças. A ponto de as suas arengas regionalistas serem consideradas palavra sagrada por todos quantos comungam da mesma fé. Há duas semanas, nestas páginas, chamaram-me à pedra com particular falta de propriedade. Apesar de terem a obrigação de saber o que é a “vulgata”, não se coibiram de utilizar indevidamente o termo, como se de vulgaridade se tratasse, atribuindo às minhas palavras esse epíteto destruidor. Na verdade, preferem a ladainha regionalista.
Escrevi então que a regionalização era um embuste maior. Ou negam ou não percebem. Vários artigos da Constituição, uns aprovados por unanimidade, outros por larguíssimas maiorias, consagram e criam as regiões desde 1976. Nunca foram cumpridos. Fizeram-se leis: umas não foram aprovadas, outras não foram aplicadas. Leis aprovadas por unanimidade tiveram o mesmo triste destino. Decretos do governo não tiveram qualquer efeito. Programas de reforma intensamente regionalistas foram aprovados e comissões constituídas, sem consequências. Programas eleitorais de quase todos os partidos prometeram a regionalização: nunca tiveram qualquer espécie de concretização, a não ser no palavreado. Artigos da Constituição foram revistos, mas nem assim foram observados. Apesar do consenso, não obstante, a quase unanimidade, mau grado os exemplos europeus, nunca, em quase cinquenta anos, se deu um tímido passo. É este talvez o único capítulo da Constituição jamais cumprido. Se isto não é um embuste, como lhe chamei e que tanto incómodo causou a Valente de Oliveira e Miguel Cadilhe, então não sei o que é um embuste. Se eles, defensores e pregadores, não se sentem vítimas de um embuste, então é forçoso concluir que não perceberam o que o país quer nem o que os seus políticos fizeram. Nunca entenderão a razão pela qual tão importante projecto e tão essencial reforma, apesar de quase unanimemente aprovados, nunca foram cumpridos.
Com excepção dos Açores e da Madeira, Portugal não conhece exemplos de tradições de poder, de reivindicação ou de identidade regionais. As experiências açoriana e madeirense são de êxito reconhecido, mesmo se implicaram, como era previsível, aumentos de despesa e de funcionários, competição de legitimidades, conflitos com os órgãos de soberania e ameaças. Muitos destes aspectos poderiam ter sido evitados, mas a verdade é que os resultados foram bons para a República, a nação, a região e a população.
De qualquer maneira, convém sublinhar que essas duas regiões têm singularidades irrepetíveis em Portugal. Além da história, assinale-se a especificidade geográfica, questão maior numa definição regional. Assim como se deve olhar para a certeza dos limites regionais e geográficos ou a segurança quanto ao desenho ou mapa. Na definição de uma região, convenhamos que é útil saber onde começa e onde acaba. Também contam a singularidade, um fortíssimo sentimento de presença e a identidade. Até o isolamento geográfico aumenta o espírito de comunidade regional. Considere-se ainda a ambição autonómica que atravessa todas as classes sociais e quase todas as correntes políticas. E também se pode referir uma singular afirmação económica, social e cultural.
Não fossem muitos os argumentos que contrariam a regionalização, um só bastaria: não há praticamente acordo quanto ao número, ao limite e à designação das regiões portuguesas! Cinco? Seis? Sete? Oito? Esse simples facto é significativo: é a prova de que essas regiões não existem. Oliveira e Cadilhe menosprezam o facto. Garantem que o referendo reprovou o mapa, não a ideia. Escapam-lhes a contradição e o absurdo de tal afirmação.
As propostas conhecidas para a regionalização partem de umas vagas tradições nominais, que correspondem evidentemente a qualquer coisa, mas que têm pouco significado político, cultural e geográfico. Insuficientes, aliás, para fundamentar uma entidade estatal e autárquica ou uma comunidade administrativa. Sublinham os regionalistas o facto de o referendo “apenas” ter recusado os limites das regiões! Extraordinário! “Apenas” visava o facto de não existirem!
Oliveira e Cadilhe fundamentam os seus argumentos com crença e confiança. Só lhes fica bem. Mas tais trunfos não chegam para condenar asperamente quem pensa de outra maneira. Nem os dispensa de fundamentar de maneira mais sólida do que com gráficos do Eurostat e similares. Não lhes basta dizer que acreditam, nem pedir confiança para que acreditemos neles. Por exemplo, não conseguem garantir que não haverá enormes aumentos de despesa e de funcionários. Dizem que não e basta. Pobre argumento, sobretudo contra os que se limitam a afirmar que existem sérios receios de que tal venha a acontecer.
Mas há mais. Os regionalistas crentes defendem calorosamente as vantagens das suas soluções, sempre com termos conhecidos e geralmente não demonstrados: entre outros, eficácia, democraticidade, proximidade e subsidiariedade. Mas fogem à reflexão sobre reais problemas num país onde é total a ausência de experiência. Por exemplo, nada dizem quanto aos inescapáveis conflitos de legitimidade e de representatividade entre o nacional, o regional e o local, num país onde apenas existem, com força e tradição, o nacional e o municipal. Como nada dizem sobre os previsíveis conflitos entre legitimidades directa e indirecta, entre sufrágio e designação, entre eleição e nomeação, entre representatividades democrática e institucional. Na verdade, todas as propostas conhecidas para criação de regiões no continente sugerem organismos mistos com a presença de membros eleitos directamente e de representantes eleitos indirectamente ou institucionalmente designados. Os regionalistas consideram uma riqueza admirável o que mais não é do que uma fonte de vendavais e um turbilhão de colisões.
A inexistência de forças, de afirmações, de tradições e de experiências regionais é talvez a principal razão que leva os regionalistas, predominantemente tecnocratas, a favorecer as regiões. Na verdade, aquela evidente fraqueza é a melhor garantia de que a regionalização seria sobretudo o prolongamento do poder central e não uma emanação de forças regionais. O problema é que o que consideram ser a grande riqueza é certamente o grande obstáculo.
Público, 6.5.2022
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2 Comments:
Querem o PORTO independente. Não sei porque fazem vida e os prazeres em Lisboa?
Com tanta sabedoria porque não fizeram no Porto,bancos,seguros, aviação, energias e tudo o que mexe a economia? E assim teriam a sua regionalização independente.
Papalvos!
«Na definição de uma região» Conviria dar lugar à Geografia, como explícito no artigo.
A) Depois da formação em 'micro' geografia com os temas da infantaria num ataque militar, antes do dominio dos mecanizados, logo com distâncias curtas para o objectivo, a uma visão mais espacial a bordo de aviões de lançamentos de pára-quedas no território.
B) Uma aula de Piteira Santos na frequência de História pós PREC-local de Alpedrinha, serra da Gardunha, a delimitar o norte montanha do sul planície alentejana.
C) Depois, a evolução dominante pelo progresso material, com a forte economia de distâncias e tempo de viagem, hoje impensável ver uma coluna de viaturas pesadas a fazer Lisboa-Santarém-Espinheira-Rio Maior-Batalha-Leiria-Condeixa-Coimbra-Celorico-Trancoso-Pocinho-Torre-Quinta Carvalhal, num percurso de 411 Km. Um dia de viagem interminável.
D) Presos do domínio das mentalidades, essa categoria de evolução lenta, os nossos estimados expert, expertizam ad infinitum.
Com agora constatado no caso Setúbal, russosXucranianos, colapso da Administração Pública?
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