6.5.23

Grande Angular - Quem perdeu. E quem ganhou.

Por António Barreto

Foram, têm sido, momentos inéditos na recente história portuguesa. E não parece que tenham acabado. Foram momentos de confronto público particularmente graves e ácidos, com pouco ou nenhum precedente. Os cidadãos tinham o direito de ficar a saber melhor o que se passou e passa, mas sobretudo a conhecer para poder escolher. Qualquer pessoa pensou que o embate podia ser sério e grave. Mas não. Tratou-se de uma competição. E não se ficou a conhecer a causa nem o que estava em jogo.

 

Muito ou tudo parece resumir-se ao confronto entre o Primeiro-ministro e o Presidente da República. Este frente-a-frente, com origem aparente no governo e no mais incompetente e egocêntrico de todos os seus ministros, João Galamba, era simplesmente sobre as relações entre os dois órgãos de soberania.

 

Diante de grandes afrontamentos, há sempre quem pergunte: Quem ganhou? Quem perdeu? Neste nosso caso, não falha a regra. E a resposta não é muito complexa ou imprevisível: perderam todos. Uns mais do que outros, mas todos perderam. E os portugueses também. 

 

O governo perdeu. Perdeu força, sentido e seriedade. O governo ficou condicionado por este confronto e todos os seus membros ficaram reféns da solidariedade com João Galamba. Os ministros passaram a ficar sob inspecção, auditoria e fiscalização permanente por parte do Presidente da República, função inédita no regime constitucional. O governo desperdiçou um formidável capital, único desde há quarenta anos, que era a convergência com o Presidente da República e a solidariedade institucional.

 

António Costa perdeu. No partido. Em metade do governo. Perante o Presidente da República. Diante dos eleitores. Ainda se pensou que o seu ar de orgulhoso “Toreador” era prenúncio de vitória, mas não foi o caso. Perdeu em toda a linha. Saiu diminuído politicamente. E moralmente. Não se percebeu por que lutou nem por que esticou a corda.

 

O Partido Socialista perdeu. A entrada em novo e glorioso ciclo de vida, com maiorias possíveis e desejadas, sem amarras às esquerdas radicais, sem necessidade de recorrer à direita, nem de depender do Presidente da República, está definitivamente comprometida e perdida. O partido parecia conseguir libertar-se do legado de Sócrates e das lutas internas, assim como das obsessões da esquerda radical, demonstrou estar enredado e desorientado. O partido entrou em momento desnecessário de fracção e fragmentação. Já nem sequer sabe tratar do que tem.

 

Perderam os grandes aventureiros do socialismo, Pedro Nuno Santos e João Galamba. Amigos de teóricos e delinquentes, deixam deliberadamente o partido alquebrado e fracturado, mas tinham a esperança de o recuperar, a breve prazo, com a ajuda dos herdeiros de Sócrates, dos activistas de causas perdidas do comunismo e dos incansáveis derrotados do Bloco de Esquerda. O que era uma grande visão da esquerda do futuro será agora resíduo de marginais.

 

Perderam as infra-estruturas nacionais mais importantes, o aeroporto e o avião, o comboio e o transporte público, a rede eléctrica e os portos, as telecomunicações e a energia. Depois de uns anos de experiências atabalhoadas e de gestão narcisista, estão hoje, em geral, sem orientação e com financiamento imprevisível, sem destino nem eficiência, à espera de novos predadores internacionais. Foi o resultado da entrega de todo este sector, que incluía aliás a habitação durante um tempo, a inquietantes jovens políticos de elevado potencial e enorme ambição, sem currículo nem obra feita, a não ser no partido, na conspiração e nos manuais.

 

O SIS perdeu crédito, confiança e recato. Desde que um ministro, há décadas, mandou publicar no Diário da República a lista de espiões, o SIS demorou anos e anos a refazer a sua reputação. Vai ser difícil respeitá-lo.

 

A TAP perdeu fama, seriedade e sobretudo valor. Em vésperas de ser vendida, vale menos do que pouco. Ninguém respeita a autoridade do accionista, ninguém acata a avaliação que se vai fazer. Qualquer abutre ou predador pode candidatar-se e vencer. A TAP não vai descansar com tudo o que terá a fazer em tribunais, com as indemnizações que vai ter de pagar, com os processos que já estão a ser fabricados pelos melhores advogados portugueses e internacionais, com os movimentos dos seus trabalhadores cada vez mais inquietos. Quem quiser negociar com a TAP, quem pretender comprar a TAP e quem desejar associar-se à TAP, sabe desde já que terá de o fazer com Galamba, o mais desqualificado dos vendedores. Mas também, a partir de agora, o mais frágil dos negociadores. Chegou a hora dos que querem desfazer a TAP ou transformar Lisboa numa sucursal: sabem que o accionista é fraco e o vendedor incompetente.

 

Perdeu o Presidente da República. Apesar de ser dele a última palavra e de ter ficado para ele a última arma, sabe que ficou na praia, nem mar nem terra, nem cidade nem montanha. Fica com um suspeito, cansativo e inédito poder fiscalizador e de inspecção que obviamente não deveria ser o seu. Perderam o seu programa e a sua noção de solidariedade institucional. Sem parceiro, não há solidariedade.

 

Por que razão ocorreu este confronto entre Presidente da República e Primeiro-ministro? Quais eram e são ainda as causas deste combate? Havia uma discussão sobre a Europa, a NATO, a Defesa e as Forças Armadas? Era ameaçadora a crise na educação, na saúde, no custo de vida e na segurança social? A perturbada e perigosa situação da habitação exigia esclarecimento legal, medidas e recursos imediatos? Havia graves decisões a tomar sobre o investimento público ou privado, a fiscalidade ou a dívida pública? Havia dilemas importantes sobre a política de imigração, a situação dos imigrantes ilegais e a permeabilidade das fronteiras? Importava prosseguir, interromper, cessar ou acelerar a concessão indiscriminada de vistos e autorizações a estrangeiros? Havia a necessidade de fazer escolhas difíceis e complexas sobre a Justiça, este que é o mais grave, mais desajustado e mais ineficaz de todos os sistemas públicos? Estávamos novamente em momento de decisão dolorosa sobre o centro de gravidade da política nacional, à esquerda, à direita ou ao centro? 

 

A todas as perguntas que precedem, a reposta é sempre, sim. Mas também é, não, não foi sobre isso que houve este confronto. Uma coisa é certa: nada hoje está melhor do que antes. Com mais uma certeza, está pior. Com os eleitores mais desconfiados dos políticos e da política.

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Público, 6.5.2023

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