24.6.23

Grande Angular - Emigrantes. Imigrantes.

Por António Barreto

Há anos, dez, vinte, que se sabe o que se passa no Samouco ou em Alcochete, isto é, no estuário do Tejo. Sabe-se tudo sobre aquela miséria vista todos os dias da ponte Vasco da Gama. Já se ouviu falar na ameijoa japonesa, nos bivalves tóxicos, na exportação para Espanha e na ilegalidade de todo o processo. Conhece-se ao pormenor, pelos jornais e pelas televisão, a vida dos imigrantes ilegais nos acampamentos, nas tendas e nos quartos sobrelotados. Sabe-se que igual ou parecido se passa no estuário do Sado, na ria de Aveiro e na ria Formosa no Algarve.

 

Há mais de vinte anos que a extracção e a exploração prosseguem tranquilamente. São, anualmente, milhares de toneladas de ameijoas assim apanhadas. Toda a gente sabe. Vereadores e ministros, Policias e inspectores, a ASAE, a saúde pública e o Serviços de Estrangeiros. Sem esquecer os jornalistas.

 

De repente, sem que se perceba porquê, o Samouco é notícia. Já foram Odemira e Aljezur, por razões parecidas, só que em vez de ameijoas eram mirtilos e abacates. E em vez das águas lamacentas do Tejo e do Sado, são as estufas, milhares delas. Ou então as terras do Alqueva e os olivais hipertensivos do Alentejo. E as vindimas do Douro, de que se começa a falar também.

 

Acrescentem-se os falsos endereços, os alojamentos miseráveis de Lisboa e os andares hiperlotados da margem Sul. Sabe-se tudo. Em nome do crescimento económico e do turismo, admite-se tudo. Sob pretexto de acolhimento humanitário e da hospitalidade, tolera-se tudo. Por causa do anti-racismo, aceita-se. Graças aos lucros com as exportações, fomenta-se. E por esses mesmo argumentos, receia-se a disciplina, escapa-se ao controlo, foge-se da legalidade e protege-se a marginalidade.

 

É velho e difícil problema. Lidar com a emigração e a imigração. Com os refugiados. Com os clandestinos. Com os contratados. Com os oportunistas e os traficantes. Dezenas de países e centenas de anos bastam para se perceber que o problema é medonho. 

 

Nada disso é desculpa. As autoridades portuguesas têm particular currículo de desajeito e cinismo. Gostam e não gostam de emigrantes. Aceitam e perseguem os imigrantes. Perdem e ganham com as migrações ilegais. Fingem que não viram e acusam. Não sabem o que fazem, mas denunciam os outros.

 

A ditadura do Estado Novo abominava as migrações ilegais que punham em causa a sua autoridade. Detestava a ideia de que os Portugueses se queriam ir embora! Não podia tolerar a fuga de jovens mancebos em tempo de guerra no Ultramar. Mas só perseguia uma muito pequena parte, enquanto deixava correr a maioria. Se o governo quisesse, com as leis que tinha, com as suas polícias, com uma só fronteira terrestre e a cumplicidade dos espanhóis, se o governo quisesse, dizia, estancava a emigração clandestina em dois tempos. Quase tudo, pelo menos. Mas o governo não queria. E via enormes vantagens nisso.

 

Basta recordar o facto de, a partir de certa altura, as remessas dos emigrantes ultrapassarem as receitas do turismo, a actividade emergente nesses anos sessenta. Era mais rentável receber as remessas do que os turistas.

 

Pense-se ainda nos efeitos formidáveis da emigração nas estruturas de actividade, da ocupação e do emprego. Graças à emigração, Portugal vivia, em vésperas da revolução de 1974, em situação de pleno emprego. As tensões sociais, nos campos e nas áreas metropolitanas, eram menores do que seria de prever sem emigração. Nas fábricas, faltava mão de obra. O desemprego era uma recordação. Em resumo, os governantes não podiam dizer publicamente, mas adoravam a emigração.

 

As autoridades portuguesas contemporâneas, da democracia, têm também face dupla. A emigração incomoda. Com números de emigrantes parecidos com os da década de 1960, pode o facto demonstrar uma espécie de equivalência: vive-se tão mal agora como então! Mas é difícil reconhecer o facto. Assim, pratica-se o culto da Diáspora, boa maneira de mostrar afectos. Verdade é que a emigração também é bem recebida. Até porque não tem sido possível satisfazer as aspirações dos cidadãos. Sejam os salários, sejam as oportunidades.

 

Por isso, às autoridades agrada a imigração. Aos políticos e aos empresários. Vêm trabalhadores dispostos a tudo, baixos salários, más condições de alojamento, obediência segura, trabalho sem contrato, poucos serviços de saúde e segurança social duvidosa. Ainda por cima, dizem, aumentam as receitas do Estado. O turismo em crescimento permanente e as exportações sazonais agradecem.

 

Toda a gente sabe tudo. É o pior diagnóstico que se pode fazer de Portugal e dos Portugueses.

 

Assim é que as autoridades não regulam as migrações, não disciplinam, não obrigam à legalidade e não inspeccionam as condições de vida e trabalho. Não protegem os que chegam, nem os que ficam. Ora, regular as migrações é uma das mais urgentes, necessárias e complexas acções que se espera. Regular as chegadas de imigrantes e candidatos. Estabelecer os enquadramentos desejáveis e democraticamente estabelecidos. Controlar as fronteiras e os documentos. Punir severamente os infractores, candidatos ilegais, traficantes, negreiros e criminosos de várias disciplinas que se escondem atrás da imigração.

 

Recorrer a todos os instrumentos legais conhecidos. Numerus clausus, quotas, vistos temporários, todos os dispositivos são bons, desde que legais, democráticos, públicos e respeitadores da dignidade humana. É a ausência de regulação que provoca a desordem e o conflito. É a falta de disciplina e de autoridade que está na origem da violência e da marginalidade.

 

Os residentes em Portugal, eleitores e estrangeiros legalizados, têm o direito de se exprimir sobre as políticas de imigração. Têm o direito de estabelecer quotas. Têm o direito de preferir certas nacionalidades, origens, religiões e profissões. Têm o direito de prosseguir políticas de integração dos imigrantes, com especial atenção para a língua, as culturas, os costumes, os sistemas legais e os valores da vida em comum.

 

Negar tudo isto, a pretexto da luta contra o racismo, a xenofobia, o colonialismo e outras fantasias é simplesmente contribuir para a perturbação, a desordem e o conflito que se preparam na Europa. Aquilo que se chama, em certos meios, a tolerância, a aceitação dos valores dos outros, o acolhimento humanista e a solidariedade humana, transforma-se em convite à ilegalidade, incentivo ao tráfego, recompensa à criminalidade e protecção da mais violenta exploração que se imagina. É o sonho transformado em pesadelo.

.

Público, 24.6.2023

Etiquetas: